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País dividido e institucionalidade democrática

Maria Paula Dallari Bucci, professora de Direito do Estado da Faculdade de Direito da USP

 

As eleições de 2022 foram históricas. Se não fosse de mau gosto, poderíamos dizer que o terceiro mandato de Lula tem um caráter mítico. O sentido global que emerge das congratulações dos líderes estrangeiros é um indicador do papel que o Brasil pode ter para o futuro da humanidade, seja pela reversão do desmatamento da Amazônia, seja pela contribuição de seu histórico de negociador para a emergência climática e para a segurança alimentar. No plano nacional, a formação da frente ampla no segundo turno garantiu o pacto pela democracia, regime político em que os governantes respondem pelo que fazem e regime social que nos humaniza, com o respeito a direitos e a solidariedade como guia, para a eliminação da fome como medida mais urgente.

É verdade que sai das urnas um país dividido. Mas a aritmética dos insatisfeitos não é estática e parte deles pode ser integrada com uma ação de pacificação política pelo governo. O preocupante é que outra parte deve permanecer não como oposição – o que é saudável e necessário – mas como núcleo de resistência antidemocrática.

Há uma divisão histórica nos mapas eleitorais pós-1988 em dois blocos dominantes; a terceira via nunca passou dos vinte por cento. Mas, a partir de 2018, a eleição de um presidente autoritário e violento inicia um processo de degradação da democracia sem precedentes. Isso foi contido, em parte, pelas instituições, como no caso da derrota do voto impresso pelo Congresso e da Escola sem Partido, pela Justiça. A própria invocação de fechamento do STF pelo bolsonarismo evidencia o quanto foram efetivos os freios e contrapesos. De outro lado, o abuso da máquina pública em favor da candidatura governista, estimado em R$ 68 bilhões pelo jornal Valor, é uma demonstração dos limites desses mecanismos.

Num movimento inédito no Brasil, fermentado na cultura da antidemocracia, o resultado é desafiado nos dias que se seguem à eleição. Os bloqueios de estradas são condenados pela justiça, mas os bolsonaristas descumprem a ordem, sob a cumplicidade de uma Polícia Rodoviária Federal (PRF) partidarizada. Em vista disso, alguns eleitores lulistas entenderam ser caso de liberar as vias pela força popular; depois da eleição não há mais por que suportar os acintes impostos pelo candidato derrotado e sua trupe. Em boa hora, desistiram.

Não podemos, em nome de fins corretos, desprezar a institucionalidade democrática e repetir, com sinal trocado (mesmo em menor grau), o erro que criticamos. A desobediência civil, que se justificou ao longo da história em situações excepcionais, quando o Estado está capturado para atuar contra os direitos da população, não pode ser banalizada; ela só cabe quando a sobrevivência está em perigo. Não por acaso, essa é a ideia subjacente ao léxico revolucionário do golpismo bolsonarista.

Na democracia, a prerrogativa de tomar decisões em nome coletivo é condicionada ao respeito à lei. O presidente não é dono dos meios da política, não governa para o seu grupo; governa para todos, incluindo os que não o elegeram. Esse princípio se combina com a alternância política; quem hoje é oposição amanhã pode ser governo. Por isso o respeito recíproco é condição de funcionamento da democracia. O descumprimento das regras por um lado não pode justificar a quebra pelo outro.

O funcionamento regular da justiça e da polícia, segundo a lei, é conquista civilizatória, o “monopólio do uso legítimo da violência” pelo Estado, de que falava Max Weber. A contestação da institucionalidade é estratégia que só interessa ao bolsonarismo neste momento.

O desafio é exatamente recuperar a institucionalidade democrática. Aqui não pode haver “pacificação”, mas deve ser tomada como medida prioritária a responsabilização rigorosa, que alcance não apenas os que usam a PRF como aparelho partidário, mas também o dirigente maior que patrocinou essa afronta.

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