O que a censura do romance ‘O avesso da pele’ e um caso no Texas têm em comum
Nina Ranieri - Professora de Direito do Estado da Faculdade de Direito da USP
Letícia Carvalho - Advogada e assessora internacional do Instituto Alana e mestranda em Direitos Humanos pela Universidade de São Paulo
Texto, originalmente, escrito para o Portal Jota
“Você sempre dizia que os negros tinham de lutar, pois o mundo branco havia nos tirado quase tudo e que pensar era o que nos restava. É necessário preservar o avesso, você me disse. Preservar aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo de estar no mundo. E por mais que sua vida seja medida pela cor, por mais que suas atitudes e modos de viver estejam sob esse domínio, você, de alguma forma, tem de preservar algo que não se encaixa nisso, entende? Pois entre músculos, órgãos e veias existe um lugar só seu, isolado e único. E é nesse lugar que estão os afetos. E são esses afetos que nos mantêm vivos.”
Esse trecho consta no livro O avesso da pele, de Jeferson Tenório, recolhido recentemente de escolas dos estados do Paraná, Goiás e Mato Grosso do Sul depois que a diretora de uma escola no Rio Grande do Sul pediu que a obra fosse banida por considerar que o romance, que discute racismo, tem descrições de cenas de sexo impróprias a estudantes de ensino médio.
O caso de repercussão nacional materializa a desigualdade e discriminação racial que atingem o direito à educação de adolescentes no mundo todo. Além deste, outro fato chamou atenção para o mesmo problema no último mês.
No Texas, nos Estados Unidos, uma decisão judicial concluiu que não houve discriminação na punição aplicada a um estudante negro pelo Distrito Escolar Barbers Hill, em razão do seu estilo de cabelo, a despeito da lei local, a “Crown Act” (Lei da Coroa, em tradução livre), proteger a liberdade de expressão étnico-racial em escolas e locais de trabalho. Resultado: o estudante, por usar dreadlocks, foi suspenso e direcionado a um programa escolar alternativo, com prejuízos não apenas para o seu desenvolvimento educacional mas também para a tolerância no ambiente escolar, situações que a legislação local visa, justamente, superar.
No Brasil, o recolhimento da obra de Tenório priva os estudantes do ensino médio dos estados citados a discutir raça e educação sexual, temas relevantes para o seu desenvolvimento integral
O Brasil é signatário da Convenção Relativa à Luta contra a Discriminação no Campo do Ensino da Unesco desde 1968, que estabelece o compromisso de garantir oportunidades iguais na educação. Além dos tratados internacionais, a Constituição Federal tipifica o racismo como crime e declara a prioridade absoluta dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes. Já a LDB, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, determina que direitos humanos e prevenção de todas as formas de violência contra crianças e adolescentes são temas transversais nos currículos de ensino, assim como é obrigatório o ensino da história e cultura africana e afro-brasileira, de acordo com a Lei 10.639/03, sancionada há mais de 20 anos.
Pesquisas conduzidas por Geledés Instituto da Mulher Negra e Instituto Alana demonstram, porém, que, de 21% das Secretarias Municipais de Educação participantes da pesquisa, mais de 70% não estão implementando adequadamente a lei voltada a combater o racismo nas escolas. A falta de uma política pública estruturada com foco na igualdade racial dificulta que a escola seja espaço de respeito e valorização das diversidades, e de enfrentamento ao racismo, com prejuízos especialmente para meninas e meninos negros, mas também para toda a comunidade escolar.
A escola, que tem o dever de ser comprometida com a perspectiva antirracista da educação infantil aos níveis superiores de ensino, é hoje o principal espaço onde os brasileiros relatam ter experimentado discriminação racial, segundo um estudo da Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica (Ipec), contratada pelo Projeto SETA e pelo Instituto de Referência Negra Peregum.
O que fica claro nos dois episódios é que tanto os sistemas de ensino e as escolas, assim como o Judiciário, não são imunes ao racismo. Ilustram, também, quão pouco compreendida é a complexidade do fenômeno do racismo no ambiente escolar, algo que também se manifesta nas opiniões favoráveis ao emprego do critério socioeconômico, exclusivamente, nas cotas para ingresso nas universidades.
O sistema de justiça brasileiro tem se movimentado para mudar essa realidade, ainda que lentamente. Em 2012, o Ministério Público do Paraná criou um Grupo de Trabalho de Combate ao Racismo que atua sobre as denúncias de racismo no ambiente escolar. É um dos únicos casos apontados na pesquisa realizada por Geledés e Instituto Alana que mostra um apoio estruturado de um órgão de justiça a uma secretaria de ensino no país.
Não é possível que vamos continuar assistindo, inertes, instituições reproduzindo desigualdades, com impactos na formação de cidadãos, no desenvolvimento e aprendizado de todas as pessoas, especialmente das negras. Vidas não podem ser medidas pela cor.