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Uso terapêutico, ausência de regulamentação, racismo foram alguns temas tratados em "Repensando a guerra às Drogas"

A conferência de encerramento foi proferida pela professora Ana Elisa Bechara, que observou que o agravamento da questão por conta do racismo

 

Edição: Kaco Bovi

 

O segundo dia do Seminário “Repensando a guerra às Drogas”, no Auditório Ruy Barbosa Nogueira da Faculdade de Direito da USP, teve como temas “STF e Congresso Nacional: a política de drogas entre o reformismo e o retrocesso”, “Usos terapêuticos, ausência de regulação adequada e judicialização” e “Proibicionismo e racismo de Estado”, culminando com a conferência de encerramento “Proibicionismo e racismo de Estado”, ministrada pela vice-diretora da FDUSP, Ana Elisa Bechara.

O evento, uma ação conjunta entre o Grupo Direito e Políticas Públicas (FDUSP), o Centro de Pesquisa Justa, Humanitas360 e o Grupo Repensando a Guerra às Drogas, reuniu especialistas e acadêmicos para o debate sobre diversos pontos, tentando esclarecer questões, apresentar conhecimentos e comentar julgamentos no Judiciário.

Os trabalhos iniciais da terça-feira foram mediados por Roberto Corciolli Filho. No painel, a juíza Maria Lúcia Karam assinalou que o debate sobre regulamentação reaviva uma questão mundial e que há versões sobre as convenções internacionais. Dentre as quais a de Viena (Áustria). Sobre a distinção entre traficantes e usuários fez um relato das legislações internacionais e nacionais. A magistrada lembrou que no Brasil a explicitação da criminalização da posse para uso pessoal veio com o Decreto Lei 385 de 1968 Falou da discrepância das leis.

Ao fim, ressaltou se tratar de apenas um exemplo dos inúmeros danos produzidos pelas inaptas políticas de tentativa de criminalização. “Me parece, portanto, imperativo superar os tardios, limitados e discriminatórios debates sobre uma suposta necessidade de diferenciar usuários de traficantes. É preciso, sim, reconhecer a manifesta incompatibilidade das regras criminalizadoras das condutas de produtores, comerciantes e consumidores. E, assim, resgatar a integridade dessas normas. É preciso legalizar e, consequentemente, regular e controlar a produção, comércio e consumo de todas as drogas”.”

Felippe Angeli (Justa) relatou que a discussão não se trata de oba-oba, mas da necessária regulamentação de más-condutas humanas, que não são benéficas à sociedade. “Obviamente que o consumo de drogas, especialmente na situação de abuso, gera uma série de malefícios. A questão é você regulamentar aquilo que sociedade está fazendo de um jeito ou de outro, e tentar aumentar os fatores de proteção e diminuir os fatores de risco”, disse. Ele ponderou que apenas quatro países produzem a cocaína (Equador, Peru, Bolívia e Colômbia) e exportam para todo o mundo.

O professor Mauricio Dieter, Direito Penal da FDUSP, abordou julgamentos no Judiciário, citando posicionamentos no STF acerca da questão iniciada em 2015 (sobre descriminalizar o porte de drogas) até 2024, sob o leque de quais foram os realces na argumentação nos votos dos ministros. “Vou adiantar a conclusão: nem reforma, nem reformismo, nem retrocesso, houve um mais do mesmo. A gente se cavou no pântano do proibicionismo ao aumentar a distância entre usuário e traficante no campo metafórico”, disse. “O que eles (os ministros) não mencionaram em suas exposições é de que maneira a saúde pública é afetada pelo tráfico. Isso é lamentável. Eles negaram o papel de uma Corte Constitucional para fazer o papel de que tudo mencionam, mas nada decidem”, acrescentou Dieter.

De acordo com o docente, havia uma esperança de que o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) pudesse abastecer a criação de um observatório, o que parece transformar o STF em uma instancia quase que regulatória dessa transformação.

Para Bruno Gonçalves da Silva, o efeito do proibicionismo são enormes. “Temos um mercado relegado a ilegalidade pelo proibicionismo e o mercado ilegal vai se regular de forma clandestina, sendo a violência o instrumental para que ele opere. É o proibicionismo que fomenta toda a violência”, asseverou. Falou ainda das mortes violentas, tendo como base o anuário de segurança pública, mais de 47 mil homicídios no Brasil, sendo 50% de jovens.

A juíza Daniela Cunha Pereira mediou a mesa sobre “Usos terapêuticos, ausência de regulação adequada e judicialização”. Compuseram os trabalhos Cecília Galício, Guilherme Roedel, José Lunardeli, Henrique Abi-Ackel e Luís Arêas Pinheiro. Roedel fez um relato desde o início da criminalização das drogas na década de 1930.

Sobre política criminal, Abi-Ackel acredita que, a partir do momento e que o Estado decidiu proibir, prejudicou o uso terapêutico.

Cecilia Galício, advogada antiproibicionista, relatou a importância de liberar o uso terapêutico sem que seja necessário estar constantemente sob a proteção de um habeas corpus. “É totalmente razoável que qualquer mãe faça o cultivo da maconha para uso medicinal. Mas vivem com medo da repressão policial”, disse. Para ela, a ausência de regulamentação, o cultivo só é possível com o habeas corpus “porque as pessoas são presas no Brasil sem qualquer prova”.

A conferência de encerramento foi marcada por emoção. Ao abrir os trabalhos, a advogada criminal e professora Jéssica Gonçalves, que trabalha com justiça restaurativa, enalteceu. “Me dói falar sobre o racismo, mas é indissociável”, disse, para, em seguida, ler o poema “Gritaram-me negra”, de Victoria Santa Cruz.

Em seguida, Ana Elisa Bechara, de início à conferência, ressaltando o racismo estrutural que marca o País. “Quando a gente fala de guerras às drogas, a gente remete muita discussão aos Estados Unidos, e isso aconteceu, por exemplo, em vários momentos. Se a gente for falar dos Estados Unidos, tem um professor norte-americano bastante conhecido por todos nós, o Brian Stevenson, que se ocupa da realidade racista do sistema de justiça do seu país, e ele diz que o grande legado da desigualdade racial para o direito penal é a presunção de culpa, é a presunção de periculosidade. Claro que a realidade norte-americana é muito diferente da nossa”, observou. “Mas a preocupação aqui se assemelha muito”, acrescentou.

Uma de suas principais preocupações, o punitivismo, alinhado ao racismo, uma vez que no País as maiores vítimas da perseguição e de homicídios são pessoas negras.

De acordo com a docente, um traço muito importante (quando se fala de política de guerras às drogas) é o racismo, uma vez que a proibição ou o proibicimismo funciona como estratégia racista de controle social. “Apesar de todo o mito que nós ainda temos de uma democracia racial ou de uma cordialidade brasileira, a verdade é que o racismo estrutural no Brasil já foi matando todo o controle social e as políticas de repressão. E isso dá especial destaque na política criminal, um reflexo que todos nós já vimos e que conhecemos bem no super encarceramento de pessoas negras. Essa é a tese", disse.

“Como é que a gente trabalha com isso? Em primeiro lugar, com dados. E, para a realidade, ver que, na prática, os crimes contra o patrimônio de crimes relacionados às drogas representam mais de 70% da nossa população carcerária. Além disso, mais de 80% da nossa população carcerária nem sequer completou o ensino fundamental, o que põe aqui de relevo toda a seletividade do nosso sistema penal”, acrescentou.

 

O congresso pode ser conferido pelo YouTube: https://www.youtube.com/@plataformajusta5162

 

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