Flávio Luiz Yarshell, professor titular de Direito Processual da Faculdade de Direito da USP
Artigo, originalmente, publicado no Jornal “Folha de S.Paulo” (https://bit.ly/402SuHN )
Talvez o maior desafio do convívio democrático seja sua manutenção: reagir com eficiência a investidas autoritárias, mas de forma democrática. Se os meios ficarem aquém, a ilicitude vence; se forem além, agentes da lei traem sua missão. Então, como combater milícias digitais, disseminação de notícias falsas, discurso de ódio e ataques à democracia, e o fazer nos limites do Estado de Direito?
Nesse contexto, é preciso dar aos hediondos ataques do dia 8 de janeiro o peso que eles têm. De um lado, ninguém pode duvidar de que devem ser investigados, as responsabilidades estabelecidas e as sanções impostas. Não há novidade nem favor nisso. De outro lado, contudo, a virulência e a gravidade dos atos não podem justificar reações que, paradoxalmente, coloquem em risco a democracia brasileira.
A inércia de quem julga sempre foi uma garantia do cidadão, até dos mais graves delinquentes: quem dá início ao processo não decide o respectivo objeto porque, do contrário, imparcialidade e independência ficariam comprometidas. Excepcionais atuações de ofício se justificam em prol da liberdade e de hipossuficientes. E, se é certo que situações extravagantes reclamam medidas compatíveis, ter consciência de que é disso que se trata é imprescindível: todo dia o sistema de Justiça tem que enfrentar uma complexa gama de conflitos, para os quais há regras vigentes.
Certamente não se combate ilicitude organizada com argumentos acadêmicos. Contudo, não se pode aceitar como normal e corriqueira a quebra de uma regra constitucional. Entende-se que o Judiciário esteja em situação delicada quando agentes encarregados de investigar/processar ficam inertes, sem razões justificáveis. Contudo, é preciso encontrar soluções jurídicas que preservem a distinção entre quem pede e quem julga. Na democracia, quem combate a ilicitude tem o encargo de ser mais engenhoso e eficiente do que quem viola a lei, sob pena se aceitar que uma transgressão poderia justificar outras.
E uma distorção leva a outras, como debates sobre cercear a liberdade de julgamento de juízes chamados a decidir questões relacionadas àqueles fatos; ou atacar magistrados que divirjam da maioria. São assustadores devaneios, que evidenciam o risco a que está exposta a democracia, mesmo quando se busca sua defesa.
Há pouco tempo, parte da população brasileira aplaudia o combate ao crime mediante combinações entre acusadores e julgadores —comprometedoras da imparcialidade, mas normais aos olhos de muitos que esperavam, como agora, apurações eficientes e punições exemplares. Sabemos os tristes resultados, seja sob a ótica dos processados, seja de quem aguardava condenações. Convém evitar erros análogos, fundados na falsa ideia de que tudo valeria na defesa da democracia.
Que não nos falte firmeza e equilíbrio nessa difícil missão, inclusive a bem do ambiente político e institucional. Como na canção de Ivan Lins e Vitor Martins ("Cartomante"), interpretada por Elis Regina, não convém lhes dar "motivo". Que Deus esteja conosco, "até o pescoço".