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Quem paga a conta do congestionamento do Judiciário brasileiro?

Desafiando as premissas do PL nº 533/2019 sobre o acesso à justiça no Brasil

 

Susana Henriques da Costa

Danieli Rocha Chiuzuli

Maria Cecília de Araujo Asperti

Mariana Tonolli Chiavone Delchiaro

 

Em meio aos debates sobre mudanças legislativas que seriam voltadas a lidar com a alta litigiosidade brasileira, o Projeto de Lei (PL) nº 533/2019 pretende alterar os arts. 17, § único e o 491, §3º, do CPC, de modo a se exigir a comprovação de uma tentativa de solução do conflito antes da sua judicialização.

As premissas que justificariam essa mudança seriam: (i) a percepção por parte da população de que o Judiciário é a melhor via de acesso à justiça; (ii) a preferência inconsciente dos consumidores pela solução judicial do conflito; e (iii) a necessidade de impor o uso de outras vias extrajudiciais, inclusive virtuais, para redirecionar demandas que hoje acarretariam custos excessivos para a justiça e que causam o seu congestionamento.

Todavia, tais premissas deixam de lado dados e estudos empíricos existentes acerca da realidade do acesso à justiça no Brasil, sobretudo em articulação com as desigualdades estruturais presentes no contexto nacional. Há, em verdade, um cenário muito mais complexo a ser analisado, de modo a se projetar o que essa nova exigência da “pretensão resistida” pode representar para o percurso do acesso à justiça.

Sobre a premissa de que os brasileiros consideram o Judiciário a melhor via para a solução de conflitos, dados recentes do Índice de Confiança na Justiça no Brasil demonstram que, em verdade, a sociedade civil percebe o Judiciário como uma instituição lenta, cara, difícil de utilizar, pouco honesta, pouco confiável e pouco independente. Em uma escala de 0 a 10, o Judiciário é avaliado com média entre 5 e 5,3 (OLIVEIRA, CUNHA, 2019, p. 157). No relatório divulgado em 2021 o índice de confiança no Judiciário caiu para 4,5 pontos (RAMOS et. al., 2021). A pesquisa mostra que o índice de confiança nas grandes empresas (49%) é até mesmo superior à confiança no Judiciário (40%). Isso indica que os brasileiros não preferem usar o Judiciário aos canais das empresas, mas que por outras razões, possivelmente a inacessibilidade e a irresponsividade dos canais de solução privados, acabam buscando a solução de seus conflitos via judicialização. É o que mostra também o estudo realizado para a SENACON, de 2020, que concluiu que “os usuários do SAC, em média, não percebem qualidade no serviço e não estão satisfeitos” com os canais de atendimento ao consumidor pelas empresas (p. 95).

Sobre a premissa de que os brasileiros teriam um perfil altamente litigioso, dados sobre as experiências da sociedade com o Judiciário e sobre os conflitos que, de fato, são conduzidos ao sistema de justiça trazem à tona uma outra realidade: os brasileiros levam conflitos muito menos à justiça do que a média global, apesar de vivenciarem problemas legais com maior frequência.

Segundo o estudo World Justice Project “Global Insights on Access to Justice” (2019), apontam que, enquanto na média global 49% dos entrevistados relataram problemas de ordem legal, no Brasil (dados coletados nas três maiores cidades no ano de 2017) 69% dos entrevistados relataram a experiência de algum problema legal nos últimos dois anos, dos quais 32% eram problemas de consumo. Contudo, enquanto na média global 29% das pessoas que vivem um problema legal buscam alguma forma de auxílio (o que inclui suporte jurídico, mas também apoio de amigos, familiares e instâncias comunitárias), apenas 13% agem desse modo no Brasil, sendo que que somente 1% considerou a resolução dos problemas em órgãos públicos, dentre os quais o Judiciário. Ressalta-se que a pesquisa contou com um índice de 12% de respondentes que relataram dificuldades ou praticamente impossibilidade financeira para resolver seus problemas legais (WJP, 2019). Nesse mesmo sentido, Oliveira e Cunha (2016), por meio de análises do ICJBrasil entre os anos de 2010-2014, apontam que a maioria dos conflitos que os brasileiros vivenciam não são conduzidos ao Judiciário, mesmo que apresentem linhas potencialmente judicializáveis. Por exemplo, a despeito de os conflitos de consumo serem considerados os principais conflitos que as pessoas consideram levar ao Judiciário, eles são contraditoriamente os que menos são levados a essas instâncias formais (OLIVEIRA; CUNHA, 2016, p. 345). Assim, é possível concluir que os brasileiros vivenciam mais problemas legais que a média global, contudo contraditoriamente procuram menos auxílio jurídico para solução desses problemas (WJP, 2019). No contexto das situações de consumo, o alto índice de relatos de problemas legais (WJP, 2019) coexiste com uma redução substancial das pessoas que de fato acionam a justiça e com as desigualdades socioeconômicas - classe e escolaridade - que atravessam os sujeitos que chegam ao Judiciário.

A terceira premissa do PL nº 533/19 é a de que a utilização obrigatória de vias extrajudiciais é uma forma eficaz de incentivar soluções de conflitos fora do Poder Judiciário, reduzindo o volume de processos. Ela também é desafiada por dados que indicam que há um acesso muito desigual aos canais de atendimento, especialmente os virtuais. 

Os dados de acesso da série histórica de 2014-2020 da plataforma consumidor.gov (retirados dos Relatórios do SINDEC) mostram um predomínio, na sua utilização, das regiões do eixo sul-sudeste (70%), de usuários jovens, com utilização restrita por idosos (apenas 9%) com maior escolaridade (65% com ensino superior completo, 30% com ensino médio e apenas 5% com ensino fundamental) (SURIANI, 2022, no prelo). Tais índices evidenciam as desigualdades no acesso à plataforma, que se colocam como desafios à perspectiva de ampliação de acesso à justiça por meio desse instrumento.

Tais desigualdades também se projetam no fato de que, a despeito do aumento de acesso à internet no Brasil nos últimos anos, a inclusão digital ainda é restrita, precária e desigual. Dados do Comitê Gestor da Internet no Brasil - TIC Domicílios 2020 demonstram que 26% dos brasileiros afirmam não serem usuários da internet sob qualquer forma (47 milhões de não usuários). O percentual dos não usuários pertence a um determinado perfil etário (66% com idade igual ou superior a 60 anos) e, majoritariamente, está concentrado nas classes sociais DE(CGI.br, 2020). Ou seja, não é possível presumir que o acesso digital é mais fácil que o acesso à justiça: pelo contrário, o que os dados indicam é que o acesso às plataformas digitais é elitizado, com determinado perfil etário e com o uso de recursos específicos.

Assim, as pesquisas aqui relatadas constroem análises que contraditam a perspectiva estritamente quantitativa sobre o fenômeno do acesso à justiça e litigiosidade. O que se percebe é que a solução proposta no PL não toca as causas que explicam a alta litigiosidade, inclusive de natureza consumeirista. Pesquisas sobre o tema (GABBAY; CUNHA, 2012; SILVA, 2022) apontam para o papel determinante das falhas regulatórias e/ou condutas de violação sistemática de direitos por fornecedores com grande poder econômico, que também são os grandes litigantes do sistema de justiça. Assim, o problema está em quem provoca a litigância repetitiva, na sua origem, e não no pequeno percentual de consumidores que acessam a justiça, ainda que esse percentual signifique quantitativamente muitas demandas.

Em outras palavras, um Judiciário assoberbado é reflexo de uma sociedade que desrespeita as leis em massa. Com isso em mente, seria importante pautar o debate em soluções voltadas à diminuição de situações de injustiças.

Se aprovado, o PL 533/2019 terá como consequência uma acentuação da desigualdade de acesso à justiça e uma elitização da justiça, não representando qualquer filtro para os cidadãos de maior renda e escolaridade, porém impondo óbices consideráveis àqueles para quem a justiça já é de difícil alcance. 

Como se vê, é muito arriscado, ainda, pautar reformas legislativas que não levem em conta a realidade brasileira, marcada por imensa desigualdade social, em que há pessoas na fila do osso e crianças desmaiando nas escolas por fome. Não se deve resolver o problema da justiça excluindo os cidadãos.

CUNHA, L.C.; OLIVEIRA, F. L. de. Medindo o acesso à Justiça Cível no Brasil. Opinião Pública, v. 22, n. 2, ago., 2016, p. 318-349.

CUNHA, L. G.; OLIVEIRA, F. L.  de. Acesso à justiça: percepção e comportamento dos brasileiros. In OLIVEIRA, V. E. de (Org.). Judicialização de políticas públicas no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2019, p. 151-174.

GABBAY, D. M.; CUNHA, L. G. (Orgs.). Litigiosidade, morosidade e litigância repetitiva no Judiciário: uma análise empírica. São Paulo: Saraiva, 2012. 

RAMOS, L. de O.; CUNHA, L. G.; OLIVEIRA, F. L.; SAMPAIO, J. de O. Relatório com os dados da pesquisa Índice de Confiança na Justiça (ICJBrasil) referente às coletas realizadas entre novembro de 2020 e janeiro de 2021, FGV Direito SP, 2021.

SENACON. Estudo sobre alteração normativa do Decreto 6.523, de 31 de julho de 2008. “PRODUTO 2 – o instrumento deverá levantar a percepção do consumidor dos serviços de telefonia móvel, comércio eletrônico, bancos, companhias aéreas e saúde suplementar, com os Serviços de Atendimentos ao Consumidor (SACs)”. Disponível em https://www.defesadoconsumidor.gov.br/images/Produto_2_Relatorio_SAC_VFinal.pdf. Acesso em 07 nov. 2021.

SILVA, M. R. da. Regulação Econômica e Processo Civil: tutela individual e coletiva na solução de conflitos envolvendo serviços públicos. São Paulo: JusPodivm, 2022. 

SURIANI, F. Acesso à justiça: análise do caso consumidor.gov. br. In: DELCHIARO, M. T. C.; MAIA, M. C. (Orgs). Refletindo sobre o acesso à justiça em contexto de litigância repetitiva. Belo Horizonte: D’Plácido, 2022. [No prelo].

Global Insights on Access to Justice. Findings from the World Justice Project. General Population Poll in 101 Countries. WJP, 2019. Disponível em: < https://worldjusticeproject.org/our-work/research-and-data/global-insights-access-justice-2019>. Acesso em 07 nov. 2021.

Pesquisa sobre o uso das tecnologias de informação e comunicação nos domicílios brasileiros: TIC Domicílios 2019. Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR. 1. ed. São Paulo: CGI.br, 2020.

 

Susana Henriques da Costa – Professora doutora da FDUSP. Coordenadora do grupo de pesquisa Acesso à justiça e litigância repetitiva. Promotora de justiça do MPSP.

 

Danieli Rocha Chiuzuli – Graduada e mestre pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto – USP

 

Maria Cecília de Araujo Asperti – Doutora e mestre em Processo Civil pela Faculdade de Direito da USP. Professora da FGV Direito SP.

 

Mariana Tonolli Chiavone Delchiaro – Mestre pela Faculdade de Direito da USP, Defensora Pública da DPSP.

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