Ana Elisa Liberatore S. Bechara, professora de Direito Penal e vice-diretora da Faculdade de Direito da USP
Nas últimas semanas, tem chamado especial atenção o debate sobre a indicação para a vaga de ministra(o) do Supremo Tribunal Federal, a ser feita pelo presidente da República em razão da iminente aposentadoria da ministra Rosa Weber. Com a saída da magistrada – cuja atuação na presidência do STF é uma das mais exitosas da história da Corte –, restará apenas uma mulher no colegiado. (Importante observar que, em seus 132 anos de existência, o Supremo Tribunal Federal teve apenas três mulheres entre seus membros.)
Diante da gritante desproporção de gênero entre os atuais ministros, diversos setores da sociedade clamam pela indicação de uma mulher para essa posição. De outro lado, tal posicionamento enfrenta críticas, com o argumento de que a magnitude do cargo exige a prevalência da análise do mérito profissional sobre considerações de gênero ou mesmo de origem étnico-racial. Eis a questão política em jogo.
A despeito de a história demonstrar a complexidade da nomeação de ministros do Supremo Tribunal Federal, influenciada por diversos fatores, é preciso entender bem o que se está a discutir quando o tema é equidade de gênero. Há de se afastar o debate de uma pretensa dicotomia entre mérito e ação afirmativa, pois esses dois elementos na verdade não se opõem, mas se complementam. E isso se justifica por duas razões fundamentais. Em primeiro lugar, a escolha de uma mulher como ministra do STF não significa a concessão de um favor a alguém a partir do gênero, negligenciando sua capacidade técnica. Pelo contrário, trata-se de reconhecer a trajetória e a efetiva competência de uma pessoa que alcançou destaque profissional não por ser mulher, mas apesar de ser mulher.
De fato, a inequidade de gênero é uma característica intrínseca à sociedade brasileira, sujeitando as mulheres a diversos tipos de violência. Para além das manifestações explícitas de agressão a que frequentemente estão expostas, em um nível de discriminação menos visível as mulheres são estereotipadas e silenciadas em sua capacidade intelectual, possuem baixa representação nos espaços institucionais de decisão, têm em geral uma carga horária maior de trabalho e recebem remuneração menor do que a recebida pelos homens. Daí afirmar-se que a opressão de gênero possui um caráter estrutural, perpassando as mais diversas esferas, e atinge as mulheres de distintas maneiras, conforme marcadores sociais de diferença que se intercomunicam, tais como raça, classe e orientação sexual.
No universo específico do direito, embora as mulheres representem cerca de metade do 1,2 milhão de inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil, sua presença em cargos de liderança em carreiras públicas e privadas ainda é minoritária e tende a espelhar o modelo masculino, levando à invisibilização de gênero e à consideração de uma suposta neutralidade do direito. Tomando-se a Faculdade de Direito da USP como exemplo paradigmático, atualmente apenas 16% do corpo docente é formado por mulheres e, tratando do nível mais alto da carreira, tal porcentual cai para 8%. A mesma discrepância ocorre no Poder Judiciário, sendo o porcentual de magistradas nos Tribunais Superiores de 19%, conforme o relatório divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça em 2019. Se o território do direito é masculino, seus métodos de ensino e aplicação concreta também o serão, perpetuando uma hegemonia discursiva que reforça a cultura patriarcal e machista da sociedade. Justamente por isso, verifica-se ainda hoje no direito brasileiro não apenas a reprodução, como também a construção de estereótipos de gênero, em uma perspectiva sexista que acaba por negar os direitos das mulheres, tornando-as mais vulneráveis à violência.
Diante da naturalização do masculino e do “apagamento” das mulheres, quando se trata de organizar congressos, bancas examinadoras, listas de candidatos a cargos e outras atividades, com frequência ouvimos as perguntas: “Há mulheres que trabalham esse tema? Há mulheres que entendem desta área?”. É evidente que elas existem, têm competência técnica e experiência suficientes para assumir os desafios jurídicos da sociedade brasileira contemporânea. Elas simplesmente precisam ser vistas.
O segundo argumento contra a consideração do debate a partir da pretensa dicotomia mérito/ação afirmativa reside na necessidade de superação da esfera meramente simbólica. Na verdade, o objetivo da maior presença feminina nas posições de liderança no Poder Judiciário vai muito além de meramente conscientizar a sociedade sobre a importância da equidade de gênero. O real benefício ultrapassa a esfera individual das mulheres indicadas aos cargos para atingir a reflexão e a aplicação de um direito menos excludente e mais equânime, verdadeiramente responsivo a uma sociedade plural e, sobretudo, ainda muito desigual. (Cf. Simone de Beauvoir, em O segundo sexo: “A representação do mundo, como o próprio mundo, é obra dos homens; eles o descrevem a partir de seu ponto de vista, o que confundem com a verdade absoluta”.) Por isso, não se trata de inserir uma mulher na Suprema Corte brasileira, mas várias, como já advertia a magistrada norte-americana Ruth Ginsburg, tratando da realidade de seu país. Em suas palavras: “Quando às vezes me perguntam quando haverá o suficiente [juízas na Suprema Corte dos Estados Unidos] e eu digo: ‘Quando houver nove’, as pessoas ficam chocadas. Mas houve nove homens, e ninguém nunca levantou uma questão sobre isso”.
Enfim, para que a sociedade seja mais igual e justa nas relações de gênero, faz-se necessário promover reflexões que levem a questionar por que o sujeito do direito é o homem branco, heterossexual, com situação econômica favorável e sem incapacidades visíveis. E tal desenvolvimento só será possível se os espaços de poder e decisão forem ocupados respeitando as diversidades, de forma democrática, inclusive em matéria de gênero. Nesse cenário, a maior representatividade feminina é fundamental.
Portanto, sem pretensão de desqualificar qualquer candidato, afirmar que a indicação de mulheres ao Supremo Tribunal Federal se trata de concessão política pelo fato de serem mulheres constitui mais uma violência de um sistema de justiça ainda caracterizado por paredes e teto de vidro que invisibilizam trajetórias e competências extraordinárias. Aliás, para além do conhecimento técnico, não há dúvidas de que há diversas mulheres com coragem, ética e altivez para fazer cumprir o papel de nossa mais alta Corte de defesa da institucionalidade democrática e dos direitos fundamentais, garantindo o acesso à justiça a todas as cidadãs e cidadãos brasileiros.