Floriano De Azevedo Marques Neto, Professor Titular de Direito Administrativo e diretor da Faculdade de Direito da USP
No final dos anos 1990, a chamada “independência” das agências reguladoras mobilizou os administrativistas. Os mais tradicionalistas viam nela grave inconstitucionalidade. Os mais radicais, adeptos de um certo ludismo jurídico, viam déficit democrático. Preocupava estes autores serem as agências meros agentes do poder econômico. Diziam ser a “agencificação” fruto do neoliberalismo e, na linha das ideias fora do lugar, manejavam com a mão esquerda a neoclássica teoria da captura — como a provar que só haveria ventura na reestatização. Na ocasião, em conjunto com vários dos autores desta coluna, afirmávamos que a autonomia das agências não era nem neoliberal, nem inconstitucional. E que ela era necessária justamente para evitar a captura.
Passaram-se os anos. E com altos e baixos, as agências foram se afirmando. O tema da autonomia saiu da pauta dos juristas, embora ora ou outra incomodasse os governantes de turno. Houve alguma captura pelo mercado e bastante captura pelos governos e agentes políticos. A omissão da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) na reforma do setor elétrico em 2013 é um triste exemplo. A postura da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) no apagão aéreo, outro mau exemplo de captura agora pelo mercado.
Mas o modelo vingou. O Judiciário chancelou a independência diversas vezes. A Lei 13.848/21 pacificou o assunto no direito positivo. O debate sobre a autonomia do Banco Central avivou os críticos. Mas, já sem a mesma força, não tiveram ouvidos.
Os posicionamentos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no contexto da pandemia da Covid-19 demonstram o quanto a independência é fundamental. Primeiro, ao autorizar o uso emergencial das vacinas, inclusive a do Butantan. Depois, recomendando a obrigatoriedade vacinal para ingressantes. Mais recentemente, autorizando vacinação infantil. Tudo contra a vontade do chefe do Executivo. Tais decisões, técnicas, e certamente responsáveis por poupar vidas, afrontaram o presidente. Levaram até a um forte repto do diretor da agência contra as invectivas presidenciais. Alguém cogitaria dessas decisões sem a garantia da independência funcional?
É para isso que ela existe. Para blindar órgãos técnicos de serem caudatários da vontade do governante eleito. À direita e à esquerda. Democráticos ou autoritários. As agências são instituições que, agindo nos limites de sua competência, devem atuar com plena autonomia. Respeitam as políticas públicas legitimamente instituídas. Mas devem poder desprezar a vontade furtiva do governante. Isso também é democracia.
A triste conjuntura do país acabou por demonstrar, como se fosse necessário, que democracia não são só eleições livres. Ela se completa com instituições fortes, Judiciário independente, devido processo, liberdades públicas respeitadas, minorias acolhidas. Agências reguladoras independentes fazem parte desse arcabouço institucional. Não são perfeitas, nada é. Mas são melhores que as alternativas. E como mostraram os fatos recentes, entregam um superávit democrático em tempos turvos, como queríamos demonstrar.