Texto: Kaco Bovi
A Sala dos Estudantes da Faculdade de Direito da USP “viveu” mais um momento histórico. Palco de grandes manifestações, o espaço sediou julgamento do Tribunal Permanente dos Povos (01/09), que condenou o presidente da República, Jair Bolsonaro, por crimes contra a humanidade cometidos durante a pandemia da covid-19. Ainda que apenas simbólica e moral, a decisão poderá ampliar a pressão internacional.
"O crime pelo qual o presidente Bolsonaro foi responsável consiste em uma violação sistemática dos direitos humanos, por ter provocado a morte de dezenas de milhares de brasileiros devido à política insensata que promoveu em relação à pandemia de covid-19", ressalta a sentença, lida por Eugenio Zaffaroni, um dos membros do tribunal, que é ex-ministro da Suprema Corte da Argentina e atual juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Ele indicou os crimes contra a humanidade como resultado da política de saúde do governo.
O jurista Paulo Sérgio João conduziu os trabalhos. Ele ressaltou que a formação do povo brasileiro sempre esteve marcada pela desumanização. “Essa desumanização é associada a discriminação racial e a violência contra os negros escravizados e o os povos indígenas”, disse.
Acrescentou que a democracia no Brasil nunca foi capaz de assegurar pra a população negra e para aos povos indígenas a plena proteção de seus direitos fundamentais.
Apesar das políticas afirmativas e da lei de cotas, os brasileiros negros estão quase que inteiramente ausentes de todas as carreiras do poder. A pandemia de covid 19 escancarou a situação gravíssima da população negra e dos povos indígenas”, acrescentou.
Por sua vez, o diretor da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, Celso Campilongo, lembrou dos primeiros momentos, quando foi procurado para que a Academia sediasse o julgamento, por Laura Greenhalgh (diretora-executiva da Comissão Arns). “Pedi a gentileza de que, pelo menos dois professores, enviassem o pedido de reserva da sala, porque é uma formalidade importante. Algumas horas depois me ligou o professor Fabio Konder Comparato, perguntando se poderiam assinar em conjunto (ele e o professor Dalmo Dallari). Infelizmente, alguns dias depois, o professor Dallari veio a falecer. Recebi o ofício do professor Comparato como se tivesse sido assinado também pelo Dalmo e no meu coração como se fosse o último pedido do Dalmo feito a mim”.
Para além da satisfação de sediar o julgamento, Campilongo acrescentou que diversidade do público de presente ganhou magnitude em razão do momento. “Esta diversidade se contrapõe ao racismo estrutural que, infelizmente, ainda marca nossa sociedade. E ao autoritarismo que permeia as relações sociais no Brasil”, assinalou.
“Tenho certeza de que essa sentença significará para a Faculdade, para os nossos estudantes, uma grande lição, um momento de reafirmação das conclusões democráticas da FDUSP”, acrescentou.
Indícios substanciais
A ex-Procuradora Geral da República, Raquel Dodge (com a Constituição a seu lado), ressaltou que esse segundo momento (o primeiro ocorreu em maio, quando do julgamento) é histórico de resistência democrática no Brasil. “É preciso aplicar a Constituição e cumprir seus objetivos. Isso só é possível se conhecermos bem os fatos, as atrocidades que não podemos admitir e as condutas que precisam ser punidas para que não se repitam”, disse.
Ao assumir a presidência dos trabalhos, Gianni Tognoni, um dos membros da Corte, com sede em Roma, na Itália, declarou que o tribunal recebeu "indícios substanciais" e que o governo jamais respondeu aos convites da entidade para participar do processo. "Ao violar profundamente seus poderes, o governo e o presidente transformaram uma emergência severa, que pedia proteção adequada, em uma ocasião para atacar populações já discriminadas, qualificadas como descartáveis", disse, ao relatar a vacinação prova.
A professora Eloísa Machado, Direito Constitucional da FGV, ressaltou que o Tribunal vai promover um escrutínio das más decisões que levaram aos milhares de mortos. "É a instância de registro da verdade e de um tipo de reparação, mesmo que seja simbólica e moral. Uma reparação para todos os que sofreram", disse, ao lembrar do trabalho desenvolvido pela Comissão Arns, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil; a Coalizão Negra por Direitos e a Internacional de Serviços Públicos.
As falas foram seguidas por Sheila de Carvalho, advogada e articuladora da Coalizão Negra por Direitos; Maurício Terena, advogado e assessor jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil; Rosângela Silva, da Associação Vítimas de familiares da Covid; Dário Kopenawa, vice-presidente da Hutukara Associação Yanomay.
A mesa, composta por José Carlos Dias, José Carlos Dias, presidente da Comissão Arns e ex-Ministro da Justiça; foi composta ainda por Shirley Marshal, representante da Federação Nacional dos Enfermeiros; Hédio Silva, representando a Coalizão Negra; entre outros.
Por fim, a presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto, Manuela Morais, sinalizou para o fato de o Brasil ter ultrapassado a marca de 684 mil mortos, vítimas do coronavírus.