Não há justificativa política que possa se sobrepor à preservação das vidas, objetivo último da segurança pública
Maria Paula Dallari Bucci e Humberto Barrionuevo Fabretti
Uma vez mais, a cidade do Rio de Janeiro foi palco de uma megaoperação policial que se transformou numa chacina com mais de 121 mortes – número superior ao massacre do Carandiru, ocorrido em 1992. O episódio expôs, novamente, um problema estrutural da segurança pública brasileira: a crença persistente em ações violentas como forma de enfrentamento ao crime organizado e a dificuldade para criar uma política nacional coordenada, integrada e capaz de organizar de modo racional a arquitetura institucional de um dos temas mais sensíveis à democracia.
Em entrevista coletiva após a ação policial, quando ainda não se sabia exatamente o número de mortos, o governador do Rio classificou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, a ADPF das Favelas, como uma “maldição” e afirmou que as decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) teriam fortalecido o Comando Vermelho, por supostamente impedir a atuação do Estado nas comunidades.
É necessário recuperar os fatos. Em 2020, no contexto da pandemia de covid-19, o relator da ADPF 635, ministro Edson Fachin, determinou a suspensão de operações policiais, exceto em situações excepcionalíssimas e justificadas. Não por acaso: em 2019, o Rio de Janeiro registrava uma taxa de mortes por intervenção policial de 10,5 por 100 mil habitantes, enquanto a média nacional era de 3,0. Em abril de 2025, o STF concluiu o julgamento homologando o plano de redução da letalidade apresentado pelo próprio governo do Estado do Rio de Janeiro, somada à obrigação de implantação de câmeras corporais e viaturas com gravação, ao respeito aos princípios de uso progressivo da força e à transparência na divulgação dos dados sobre letalidade policial, o que é o padrão mínimo considerado no plano internacional.
As declarações do governo do Estado, entretanto, ignoram o conteúdo real da decisão e invertem completamente sua lógica. O Supremo nunca proibiu operações policiais; o que vedou foi a irracionalidade estatal. A Corte determinou que ações armadas sejam planejadas, controladas e justificadas. É evidente que o crime organizado precisa ser enfrentado, mas esse enfrentamento deve ocorrer com racionalidade, técnica e dentro da legalidade, preservando a vida tanto dos policiais quanto da população.
O trágico episódio desta semana escancara a urgência de uma agenda de segurança pública orientada pela cidadania e pela cooperação federativa. Nesse sentido, ganha força a proposta de constitucionalizar o Sistema Único de Segurança Pública (Susp).
Assim como o SUS foi capaz de organizar nacionalmente políticas de saúde, o Susp tem potencial para estabelecer um regime cooperativo contínuo e estável na segurança pública – algo que o Brasil jamais teve desde a redemocratização.
A estruturação de um sistema único favorece a cooperação entre União, Estados e municípios, evitando diretrizes contraditórias e ações fragmentadas diante de problemas nacionais – entre eles, o crime organizado e a letalidade policial. O espírito do Susp, desenhado desde 2003 e transformado em lei apenas em 2018, é precisamente o trabalho articulado entre os entes federativos e a sociedade civil sob os pilares da legalidade, transparência e coordenação.
Unificar o discurso e a prática da segurança pública sob o eixo da cidadania não significa impor a vontade de um ente federado sobre outro, tampouco complacência com o crime organizado. Significa construir, de forma compartilhada, estratégias comuns, parâmetros técnicos e compromissos institucionais capazes de sustentar uma política pública que efetivamente reduza a violência e sufoque as facções criminosas sem abrir mão da legalidade democrática. Sem isso, operações policiais como a do dia 27 de outubro deixam de ser exceções trágicas para se tornarem o sintoma rotineiro de uma política que continua produzindo corpos e não segurança.
Não parece ter sido gratuita a escolha da ADPF 635 como bode expiatório para a violência estatal. O relator original da ação é o ministro Fachin, que na condição de presidente do STF se torna uma figura conveniente para falas anti-institucionais nas redes sociais. Lamentavelmente, não há surpresa, uma vez que esse risco fora alertado na decisão colegiada de 3 de abril, que dizia: “Diante de qualquer narrativa construída no sentido de imputar a decisões do STF a responsabilidade por problemas graves, crônicos e em muito preexistentes à ADPF 635/RJ, que tanto afligem a população do Estado do Rio de Janeiro, hão de falar mais alto os fatos. E o que dizem os fatos é que no período de vigência das medidas cautelares proferidas nesta ação caíram significativamente os índices de letalidade policial, bem como de vitimização policial e outros diversos índices oficiais de criminalidade, como já registrado por ocasião do voto proferido em 5 de fevereiro de 2025.”
Não há justificativa política que possa se sobrepor à preservação das vidas, objetivo último da segurança pública.
Maria Paula Dallari Bucci
Professora da Faculdade de Direito da USP, é livre-docente pela mesma instituição
Humberto Barrionuevo Fabretti
Professor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, é pesquisador em pós-doutorado na Faculdade de Direito da USP