Celso Fernandes Campilongo é diretor na Faculdade Direito da USP (mandato, a partir de 21 de fevereiro) e professor no Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito
Ana Elisa Liberatore S. Bechara é vice-diretora na Faculdade Direito da USP (mandato, a partir de 21 de fevereiro) e professora no Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito
O debate sobre os desafios do ensino do Direito não é novo e nem exclusivo da realidade brasileira. De fato, o modelo tradicional de ensino que prevaleceu até o final do século XX, de inspiração privatista e organizado com base nas ideias de soberania estatal e de legalidade, já não consegue fornecer respostas adequadas às perplexidades e rupturas advindas da sociedade contemporânea. Alguns sinais das dificuldades nessa área são o frequente descompasso entre o que é ministrado em sala de aula e a realidade prática, as altíssimas taxas de reprovação nos exames da Ordem dos Advogados do Brasil e o não preenchimento de vagas em concursos públicos para o ingresso em carreiras jurídicas.
A discussão sobre a necessidade de revisão do ensino jurídico assumiu, porém, novos contornos nos últimos anos, em razão de diversos fatores. Em primeiro lugar, destacam-se o aumento vertiginoso do número de cursos de Direito no Brasil e o intenso processo de transformação vivenciado no país em relação à evolução do quadro institucional e à reformulação de suas bases normativas. De outra parte, apontam-se as mudanças na operação concreta do Direito provocadas pela inteligência artificial, exigindo do profissional mais criatividade e capacidade analítica para conseguir sobreviver às novas necessidades do mercado. Além disso, assiste-se hoje a uma dicotomia entre o fortalecimento de diversos movimentos sociais voltados à inclusão e à cidadania, de um lado, e ataques ao próprio Estado Democrático de Direito, de outro, o que gera ao mesmo tempo esperança de uma sociedade mais equânime e preocupação de retrocessos político-sociais.
Outro importante fator a impulsionar a reestruturação do ensino jurídico é a progressiva mudança de perfil socioeconômico do corpo discente, causada pelas ações afirmativas adotadas nas universidades públicas na última década e a ampliação da disponibilização de vagas pelo Sistema de Seleção Unificada (SISU). A crescente diversidade nas salas de aula possibilita novas percepções, novos debates e novas capacidades, determinando um extraordinário avanço na formação, com a superação da ideia disfuncional de um Direito “neutro” excludente e a compreensão crítica das interações sociais a partir das diferenças. Em contrapartida, a mudança de perfil discente traz novos desafios à Academia, relacionados à formulação de políticas de acolhimento e de permanência de grupos vulneráveis.
Finalmente, a pandemia de Covid-19 impôs novas dificuldades, relacionadas à exigência de distanciamento físico, à necessidade de aprendizado de novas tecnologias de ensino e ao aumento da demanda social quanto à contribuição da Universidade para a solução de problemas concretos. Paradoxalmente, tais adversidades acabaram por acelerar um importante processo de evolução, implicando a busca de capacitação pedagógica pelos docentes, o crescimento da interdisciplinaridade nos cursos e a maior humanização e acolhimento no relacionamento acadêmico, que passou a reconhecer questões éticas, socioeconômicas e de saúde mental antes invisibilizadas.
Diante dos fatores expostos e no âmbito de sociedades cada vez mais complexas, interconectadas globalmente e marcadas por dilemas inéditos, o ensino do Direito não pode ser apartado da realidade e deve ser capaz de articular os novos e plurais saberes advindos de transformações econômicas, sociais e políticas, sem desprezar a riqueza de ideias e perspectivas de um conhecimento científico que converte o universo jurídico ao mesmo tempo em fonte de valor social e território de poder.
Tratando especificamente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, é preciso anotar sua condição peculiar no cenário nacional. Criado por decreto imperial em 1827, o curso de Direito de São Paulo teve sua vocação inicial ligada à necessidade de formação de quadros para o Estado brasileiro nascente, preocupando-se desde a sua fundação com os problemas concretos do país. A passagem do tempo e a multiplicação dos cursos jurídicos no Brasil não alteraram significativamente a posição de referência das Arcadas, mas exigem uma reflexão sobre sua missão atual.
Evidente que a Faculdade de Direito da USP deve continuar a exercer seu papel político no cenário brasileiro, impulsionando discussões e posicionando-se no debate público sobre temas importantes, mas para tanto precisa repensar constantemente o conteúdo da formação que promove. Sob essa perspectiva, é importante destacar que embora tenha precedido a criação da USP, a identidade da quase bicentenária Faculdade de Direito hoje é dada pela integração a uma das mais importantes universidades de pesquisa da América Latina. Assim, no âmbito do denominado tripé universitário, o ensino jurídico deve estar intimamente relacionado às atividades de pesquisa e de extensão, alimentando-se delas para promover uma formação humanista que cultive a atitude crítica e investigativa como elemento central.
Nesse contexto, um dos principais desafios do ensino do Direito é envolver as alunas e alunos não só no aprendizado técnico, mas na reflexão sobre os problemas sociais, proporcionando instrumental teórico e analítico para o desenvolvimento de um raciocínio jurídico apurado, que envolva sensibilidade, reflexão e criatividade. Para isso, é necessário promover mudanças na metodologia de ensino, articulando-a, inclusive, com as pesquisas institucionais e atividades de extensão relacionadas a temas socialmente caros. Trata-se de deixar de lado o mero exercício da repetição para provocar continuamente os discentes à autocompreensão como parte dos conflitos sociais, cultivando, a partir da análise crítica da realidade contemporânea, a capacidade de espantar-se e de questionar.
Da mesma forma, um ensino jurídico mais condizente com as questões complexas impostas pela realidade social atual, tais como aquelas relacionadas à saúde, ao meio ambiente e ao controle da corrupção, passa necessariamente pela interdisciplinaridade e pelo incremento da política de internacionalização. Mas isso é tema para uma abordagem específica. Em qualquer caso, há que se romper fronteiras, preconceitos e estereótipos, tomando em conta, ao lado da excelência, a contribuição social, a interdependência e a inclusão como valores acadêmicos fundamentais.
Às vésperas do bicentenário da independência e da criação dos cursos de Direito no Brasil, precisamos repensar conteúdos e métodos, rompendo com o conservadorismo pedagógico que contribui para a manutenção do conservadorismo socioeconômico e político-jurídico. O ensino do Direito deve habilitar os profissionais de amanhã a entender criticamente a realidade da perspectiva jurídica, sem perder de vista o diálogo com os demais saberes e as necessidades sociais inerentes a uma realidade desigual e em constante transformação.