Manoel Gonçalves Ferreira Filho, professor emérito da Faculdade de Direito da USP
Há quase quatro séculos um frade baiano, Frei Vicente do Salvador escreveu uma história do Brasil que abrange o período 1500-1627. Nela, há uma passagem, certamente pessimista, que muitos conhecem e alguns a citam. Diz ele num momento certamente depressivo: “Nem um homem nesta terra é republico nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular”.[1]
Disto, observa que “as casas dos ricos … estão providas de todo o necessário”, mas “o que é de fontes, pontes, caminhos e outras coisas públicas é uma piedade, porque, atendo-se uns aos outros nenhum a faz, ainda que bebam água suja e se molhem ao passar dos rios ou se orvalhem pelos caminhos…” O texto já é uma denúncia da desigualdade no país, o que tantos ainda hoje verberam e que parece longe de ser, não digo eliminada, pois isto é utópico, mas atenuada na medida do possível.
Deste ângulo, este artigozinho seria mais um entre milhares, mas não é ele o ângulo que nele se vai abordar. É outro e o seu cerne está no título, e mais explicitamente no texto que foi citado e vai repetido, “nem um homem nesta terra é republico nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular”.
Falava ele isto num livro de 1627, está isto mudado em dezembro de 2021?
Na linguagem de hoje, isto seria, por um lado, a denúncia das disparidades e do subdesenvolvimento e uma (possível) razão: cada um só cuidar de si e de seus interesses, e ninguém cuidava do interesse comum, mesmo que por isso também sofresse as consequências desse descaso pelo interesse de todos.
O quadro que motivou essa observação é claro.
Os “ricos” – os senhores de engenho, os empresários do tempo – cuidavam apenas de ganhar mais e sempre mais, descurando do bem estar dos que para eles trabalhavam – na época, em sua esmagadora maioria, escravos. (Um maldoso lembraria talvez de negociatas delatadas.)
Os governantes – e da época é outra obra clássica, atribuída às vezes a Vieira, A arte de furtar.[2] Igualmente só se preocupavam com o que lhes rendia ou a seus apaniguados, nunca com o que convinha a todos. (O mesmo maldoso se lembraria de eleitos que se aproveitam de seu poder, em favor de si próprios ou de seus amigos consociados, ou dirigem as obras ou o dinheiro público – em quantias fabulosas – para ganhar apoio e simpatia de sua clientela ou de suas cercanias).
Por sua vez, o cumprimento das leis não era rigorosamente exigido, mas levava em conta a personalidade do acusado. E as “leis” muitas vezes não eram as normas inscritas nas Ordenações, mas a que o julgador inventava, segundo sua visão pessoal, quiçá personalíssima, do justo.
E, não existindo na época uma imprensa imparcial, a versão dos fatos que o povo recebia e com que havia de balizar suas opções, era, não a verdade objetiva, mas aquilo que interessava ou com que simpatiza os que faziam a opinião pública. Igualmente, os intelectuais da época – os clérigos – martelavam o espírito dos crentes, com as verdades da moda, no caso as das igrejas.
A visão de Frei Vicente do Salvador merece ser lembrada, ademais, porque ele antecipa de mais de cem anos a lição de um francês célebre, chamado Montesquieu. Este aponta que a natureza de um sistema (ele escrevia sobre sistemas de governo, ou as caraterísticas traçadas na constituição) não teriam valia se concomitantemente não prevalecesse um “princípio” – uma maneira agir – que desse vida às regras escritas. Tal princípio haveria de ser infundido pela educação. Está isto no Espírito das Leis, Livros II e III).
Ele trata até do “princípio” da democracia, falando do amor da pátria, do amor às leis, da igualdade, da consideração pelo interesse comum e outras banalidades que ainda são elogiadas, mas na vida de todos os dias parecem estão mortas. Ou retrógradas.