Heitor Vitor Mendonça Sica, Professor Associado de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da USP. Advogado
Tão logo aprovada a EC 45/2004, que criou a repercussão geral para o recurso extraordinário, imaginava-se que não tardaria a criação de filtro similar para o recurso especial.
Contudo, a PEC apresentada para esse fim em 2005 não vingou, instaurando-se, por 18 anos, uma situação um tanto incoerente: o STF poderia não apreciar a violação a uma norma constitucional por irrelevante, mas o STJ não poderia se recusar a fazê-lo quanto a uma norma infraconstitucional.
Isso não quer dizer que o STJ tenha ficado, nessas quase duas décadas, desprovido de mecanismos para (tentar) gerir as centenas de milhares de recursos especiais que lhe são remetidos a cada ano, em especial a sistemática dos recursos repetitivos.
Esse instrumento ensejou, nos seus primeiros anos, significativa redução do número de recursos especiais recebidos pelo STJ, mas o efeito foi paliativo e, por isso, há tempos, se via um clamor (dos próprios integrantes da Corte e de muitos constitucionalistas e processualistas) por um filtro de relevância para o recurso especial.
A EC 125 de 15.07.2022 acrescenta os §§2º e 3º ao art. 105 da Constituição Federal, criando um filtro para admissibilidade de recursos especiais baseado na “relevância das questões de direito federal infraconstitucional”.
Impõe-se ao recorrente o ônus de demonstrar esse requisito nas razões recursais, presumindo-se existente em um rol de cinco hipóteses (ações penais, ações de improbidade administrativa, ações cujo valor da causa ultrapasse 500 salários mínimos, ações que podem gerar inelegibilidade e hipóteses em que o acórdão contrarie jurisprudência dominante no STJ), o qual pode ser alargado por pela lei que terá de ser promulgada para regulamentar o instituto.
De fato, entende-se que esses novos dispositivos não têm eficácia plena, pois dependem de regulamentação em sede infraconstitucional (no corpo do CPC), mercê da disposição “nos termos da lei”, constante do §2º, a exemplo do que ocorreu quando se instituiu o filtro da repercussão geral da questão constitucional para o recurso extraordinário que a EC 45 inseriu no art. 102, §3º e foi regulamentado pela Lei 11.418/2006). A despeito disso, estranhamente, o art. 2º da Emenda prevê que suas novas disposições se aplicam aos recursos especiais interpostos após início da sua vigência (que se dá quando de sua publicação). Ninguém se espantará se o STJ passar a aplicar o filtro antes da sua regulamentação.
São evidentes as semelhanças entre a repercussão geral para o recurso extraordinário e a relevância para o recurso especial, embora não tenha sido utilizada a mesma terminologia. Em ambos os casos, o texto constitucional não especifica o que se entende, respectivamente, por uma matéria com repercussão geral ou com relevância, cabendo à legislação infraconstitucional fazê-lo. O art.1035, §1º, do CPC emprega uma fórmula vaga para exprimir o que seria uma matéria com repercussão geral, isto é, aquela revestida de relevância “do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico que ultrapassem os interesses subjetivos do processo”. Fatalmente a (necessária) regulamentação da EC 125/2022 trará fórmula similar.
Em ambos os institutos há situações em que se dispensa o recorrente de demonstrar em concreto a transcendência das questões debatidas para efeito de superar o filtro. No âmbito do recurso extraordinário, presume-se a repercussão geral quando o acórdão contrariar súmula ou jurisprudência dominante ou declarar inconstitucionalidade de tratado ou lei federal (art.1035, §3º, I e III, CPC). Conforme acima mencionado, as hipóteses de relevância da questão no recurso especial são mais numerosas e largas, podendo ainda ser ampliadas por normas infraconstitucionais.
De outro lado, se estabeleceu o mesmo quórum de deliberação para aplicação do filtro: dois terços dos julgadores, embora no STF a deliberação sempre caiba ao Plenário, ao passo que no STJ caberá à Turma a quem competir julgar o recurso especial.
Resta saber como ocorrerá a interação entre o filtro e os mecanismos de gerenciamento de processos repetitivos.
Com efeito, é bastante provável que se verifique no STJ situação similar àquela existente no STF, no sentido de que um dos principais elementos caracterizadores da transcendência da questão infraconstitucional repousará sobre a multiplicidade de processos em que ela é debatida. Ou seja, questão relevante se apresenta quase como sinônimo de matéria repetitiva.
Ademais, no âmbito do STF, a negativa de repercussão geral se estende a todos os demais recursos extraordinários que versem sobre a mesma matéria, os quais são barrados de forma muito mais célere (art. 1035, §8º, CPC). É difícil imaginar que ao STJ não se atribua o mesmo poder.
Para concluir, é de se supor que os litigantes passem a adaptar suas estratégias para transpor os obstáculos para acesso ao STJ. Nas causas de valor inestimável, em que o valor da causa é fixado aleatoriamente em dez ou cem mil reais apenas “para efeitos fiscais”, prefira-se, a partir de agora, montante superior a 500 salários mínimos, de modo a atrair a hipótese de relevância presumida do inciso III do art. 105, §3º. No mesmo sentido, passará a ser mais usada a alínea “c” do permissivo constitucional, a fim de atrair a incidência do inciso V do mesmo §3º.