Heleno Taveira Torres, Professor Titular de Direito Financeiro da Faculdade de Direito da USP
Por meio da Lei Complementar nº 192, de 11 de março de 2022, tivemos a criação do regime monofásico dotado de alíquota única e uniforme do ICMS-combustíveis, conforme a Emenda Constitucional nº 33/2001. Com isso, teremos inequívoca redução de preços, diminuirá a sonegação e ver-se-á aumento de arrecadação nos estados, pela eliminação das perdas, dos excessos de conflitividade e da guerra fiscal.
Todo o pandemônio gerado nos últimos meses, porém, em torno dos combustíveis, não são decorrentes deste regime, que só entrará em vigor em 1º de janeiro de 2023.
Em realidade, o mais premente e relevante consistiria em acompanhar a atividade dos estados para edição do Convênio Confaz, na construção dos parâmetros para compor a alíquota única e uniforme (ad rem), que integrará o modelo de tributação monofásica a partir de 2023, no lugar da esquizofrênica substituição tributária, que a todos prejudica.
Primus. É de dever dar a César o que é de César. Como a partir de 2023 teremos o regime de alíquota única do ICMS, a grande dúvida era saber qual seria o volume desta alíquota, mesmo que se trate de alíquota "ad rem". Neste particular, coube ao Supremo Tribunal Federal estabelecer o dever de observância do primado da essencialidade, regra constitucional do artigo 155, § 2º, III, segundo o qual o ICMS "poderá ser seletivo, em função da essencialidade das mercadorias e dos serviços".
Assim, em 15 de março de 2022, o STF publicou o acórdão do leading case do Recurso Extraordinário 714139, cujo Tema 745 foi assim ementado: "Adotada, pelo legislador estadual, a técnica da seletividade em relação ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), discrepam do figurino constitucional alíquotas sobre as operações de energia elétrica e serviços de telecomunicação em patamar superior ao das operações em geral, considerada a essencialidade dos bens e serviços".
O Supremo, porém, declarou a modulação de efeitos da decisão em favor dos Estados, em caráter pro futuro, para que a redução das alíquotas com base na essencialidade somente produzisse "efeitos a partir do exercício financeiro de 2024, ressalvando-se as ações ajuizadas até a data do início do julgamento do mérito (5/2/21)".
Neste caso, fixou-se um direito público subjetivo em favor dos estados, segundo o qual somente deveriam suportar o ônus da redução das alíquotas a partir de 2024, o que se justifica, pois necessitariam adaptar suas finanças no orçamento de 2023 àquela nova sistemática impositiva.
Secundus. Em 11 de março de 2022, a Câmara de Deputados, contra aquele direito dos estados, resolve antecipar a entrada em vigor da referida limitação da "essencialidade" a 1º de janeiro de 2023, para reduzir o ICMS para alíquotas até 17%, que é a base de incidência das mercadorias.
Foi assim que surgiu o Projeto de Lei Complementar n. 18/2022, de autoria do deputado Danilo Forte (PSDB-CE), para alterar o CTN e a Lei Complementar nº 87/1996, para considerar “bens e serviços essenciais e indispensáveis, não podendo ser tratados como supérfluos”, os relativos aos combustíveis, à energia elétrica, às comunicações e ao transporte coletivo. Nesta semana, o Projeto foi aprovado no Senado.
Esta mudança somente deveria surtir efeitos a partir de 2023, pois depende de convênio e mudanças no sistema de substituição tributária. Não se deve olvidar que o ICMS-ST-combustíveis será extinto para os principais combustíveis, para a entrada em vigor da LC nº 192/2022.
Tertius. A Presidência da República, então, passa a falar em "zerar" o ICMS desde agora. Logicamente, uma imprecisão, pois, de certo, sabe que o artigo 151, III da CF proíbe "instituir isenções de tributos da competência dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios". Seguem-se assim, novos diálogos entre governadores para alinharem esta inusitada antecipação, o que dificilmente irá prosperar. Ao mesmo tempo, discute-se o montante dos repasses aos estados, por meio da PEC nº 16/2022.
Estas reduções exigiriam aprovação de convênio de ICMS, no âmbito do Confaz, e por unanimidade, na forma da Lei Complementar nº 24/1975. Ademais, dificilmente, chegará a bom termo antes de 2023, pelo esgotamento da capacidade financeira da União para construir, em tão breve tempo, um fundo de compensação. Portanto, esta medida antecipatória será de todo inútil, dado que, este ano, não trará nenhum benefício para os consumidores.
Quartus. Os estados, então, para darem aplicação à LC nº 192/2022, instituíram o Convênio Confaz 116/2022, o qual trouxe as regras de transição para dar efeitos imediatos ao regime monofásico de alíquota uniforme. A União, porém, por meio da Advocacia-Geral da União (AGU), resolveu contestar os parâmetros empregados, os quais estavam evidentemente em patamares muito elevados. Isto deu ensejo à ADI 7164, sob relatoria do ministro André Mendonça.
Após audiência pública e tentativa de acordo, os estados entregaram no dia de ontem uma lista de condições que, claramente, revelam o intuito de não renunciarem ao direito da entrada em vigor da redução a 17% do regime de essencialidade em 2024, acompanhada de Convênio para o ano de 2022 que autoriza a redução, mas, neste caso, sob "compensação integral das perdas arrecadatórias dos estados". Ou seja, nada mais justo. Se a União quer fazer favor com o chapéu alheio, que assuma os custos da medida.
Quintus. A União, em tom de desespero, alega que irá reduzir a zero as alíquotas das contribuições ao PIS e Cofins (que já estavam nesta condição desde 11.03.2022, por força do artigo 9º da LC nº 192/2022), além de oferecer o mesmo benefício na Cide-combustíveis. O resultado, agora, não poderia ser menos catastrófico.
Após os mais variados compromissos internacionais em matéria ambiental, o Brasil tem o dever de privilegiar a matriz energética dos biocombustíveis, para evitar afetação da emissão de CO2. Daí a importância de manter-se tratamento privilegiado para o biodiesel e para o etanol anidro. Até mesmo como forma de coerência com programas exitosos e que se encontram em funcionamento.
Por meio do "Carbon Pricing Score" (CPS), mede-se até que ponto os países atingiram a meta de precificar todas as emissões de carbono relacionadas à energia em determinados valores de referência para custos de carbono. Por isso, a igualação de preços entre combustíveis fósseis e biocombustíveis elevaria o grau CPS, por si só, logo contrária aos esforços das políticas do Acordo de Paris.
Destarte, devido à imprescindibilidade de sua aplicação ao Etanol Combustível e ao Biodiesel, não se pode deixar de exigir um tratamento mais favorecido para estimular o consumo dos biocombustíveis, com alíquotas uniformes mais favoráveis.
Sextus. Neste contexto, em 9 de junho de 2022, eis que surge a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 15, de 2022, do senador Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), que propõe a inclusão do inciso VIII ao § 1º do artigo 225 CF, para que o Poder Público mantenha regime fiscal favorecido para os biocombustíveis, na forma da lei complementar, a fim de assegurar-lhes tributação inferior a incidente sobre os combustíveis fósseis, capaz de garantir diferencial competitivo em relação a estes, especialmente em relação ao PIS, Cofins e ICMS. A medida tenta mitigar os danos de criação de alíquota para todos os combustíveis, sem diferenciação daquelas hipóteses de favorecimento aos biocombustíveis.
Septimus. Não obstantes todas essas confusas medidas ou tentativas de mudanças, contra todo o esforço de redução de custos tributários, eis que a Presidência da República encaminha ao Congresso a MP nº 1.118, de 17 de maio de 2002, justamente com o propósito oposto, para não reconhecer o direito aos “créditos vinculados” das contribuições PIS e Cofins, do artigo 9º da LC nº 192/2022, por parte dos varejistas e destinatários finais dos combustíveis. Nada mais descabido.
A MP nº 1.118/2022 afastou a possibilidade de manutenção dos créditos do PIS e da Cofins previstas no artigo 9º da LC nº 192/2022, que outrora se estendia para todas "pessoas jurídicas da cadeira, incluído o adquirente final", para que restem limitada às "pessoas jurídicas produtoras ou revendedoras dos produtos". Tem-se, com isso, alteração de caráter subjetivo de elevada gravidade.
Logo na sequência, tem início a ADI nº 7.181, sob relatoria do ministro Dias Toffoli, para examinar a edição da MP nº 1.118/2002, cujo debate ultrapassa a discussão sobre anterioridade nonagesimal e deve ser vista sob o prisma da segurança jurídica.
A entrada em vigor da MP nº 1.118/2022 na data de sua publicação afronta a anterioridade nonagesimal, aplicável a qualquer espécie tributária que não tenha sido expressamente excepcionada pelo constituinte (v.g., artigos. 153, I, II, III e V; e 154, II, da CF). Logo, é acertada a visão do ministro Dias Toffoli, na cautelar concedida na ADI nº 7.181, que exige respeito ao artigo 150, III, "c", da CF, quanto à "possibilidade de a pessoa jurídica adquirente final dos produtos a que se referem o caput do artigo 9º da LC nº 192/22 manter créditos vinculados".[1]
Deveras, a jurisprudência do STF, à exemplo do RE nº 983.821/SC AgR, é firme em assinalar que "a revogação de benefício fiscal, quando acarrete majoração indireta de tributos, deve observar o princípio da anterioridade nonagesimal".[2] A compreensão escora-se, igualmente, nos REs nº 564.225-AgR e 1.081.041-AgR, além da ADI nº 4.661 MC/DF.[3]
Contudo, e o ministro Dias Toffoli não deixou de consignar que ali fazia uma análise em juízo perfunctório. De certo, ao melhor deter-se sobre o tema, colherá com clareza a evidente ofensa aos princípios da segurança jurídica, por se tratar de a concessão de isenção por prazo certo, o que atrai o efeito de bloqueio do artigo 178 do CTN.
O ordenamento não admite a revogação de um regime de alíquota zero, que estaria em vigor até 31/12/2022, passado para a data de publicação. A interpretação do artigo 178 do CTN protege o direito dos beneficiários. Ou como bem afirmou Pontes de Miranda, "desde o dia da promessa há o direito adquirido".[4]
Com efeito, por força do artigo 178 do CTN, uma isenção ou alíquota zero somente pode ser revogada ou modificada se não for condicionada ou outorgada por prazo certo, na medida em que, na expressão de José Souto Maior Borges, "[n]asce, com a concessão, direito subjetivo ao gozo da isenção tributária".[5] E mormente no caso das contribuições PIS e COFINS, pois o § 12 do art. 195 exige o mesmo tratamento de não cumulatividade por setor de atividade econômica.
Os regimes de "alíquota zero", como os veiculado pelo artigo 9º da LC nº 192/2022, e "isenção" são equivalentes quanto à proteção de segurança jurídica. Como o STF já reconheceu, a exemplo do RE nº 398.365-RG/RS, "as consequências que derivam da alíquota zero são idênticas, em termos econômicos, aos efeitos peculiares à isenção, o que permite dispensar-lhes o mesmo tratamento" (Tema 844).[6]
Os créditos sob análise não são do tipo dos "presumidos". Muito menos são físicos, em relação aos bens adquiridos. Estão relacionados a outros custos e insumos, desde que efetivamente apurados. A questão sob análise não guarda, pois, qualquer correlação com o Tema nº 1.093 do STJ, de acordo com o qual o regime monofásico tem o condão de gerar créditos conquanto exista lei especial a garanti-lo.
Estas breves considerações são feitas no limite de esclarecimentos a respeito do conjunto das medidas e da necessária interconexão entre elas, logo, sem o propósito de esgotamento, até por falta de espaço. As contas públicas merecem respeito. Há outros meios para se alcançar a redução dos preços de combustíveis. Por isso, no que a redução da carga tributária possa contribuir, que não seja à míngua dos serviços públicos ou dos benefícios sociais.
[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal – STF. ADI nº 7.181 MC. Relator Ministro Dias Toffoli. Decisão Monocrática, j. 07/06/2022, Dje 08/06/2022.
[2] BRASIL. Supremo Tribunal Federal – STF, RE nº 983.821/SC AgR. Relatora Ministra Rosa Weber, Primeira Turma, j. 03/04/2018, DJe 16/04/2018.
[3] BRASIL. Supremo Tribunal Federal – STF. RE 564.225 AgR. Relator Ministro Marco Aurélio, Primeira Turma, j. 02/09/2014, DJe 18/11/2014; RE nº 1.081.041 AgR. Relator Ministro Dias Toffoli, Segunda Turma, j. 09/04/2018, DJe 27/04/2018; e ADI nº 4.661 MC. Relator Ministro Marco Aurélio, Tribunal Pleno, j. 20/10/2011, DJe 23/03/2012.
[4] MIRANDA, Pontes. Parecer n. 106, sobre concessão de isenção de impostos, prazo de duração, substituição do imposto por outro, permanência da isenção e ofensa a direito adquirido. In: Dez anos de Pareceres. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975, v. 5, p. 27
[5] BORGES, Souto Maior. Teoria geral da isenção tributária. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 76.
[6] BRASIL. Supremo Tribunal Federal – STF. RE nº 398.365-RG/RS. Relator Ministro Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, j. 27;08/2015, DJe 22/09/2015.