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Direito Romano ou Direitos Romanos?

Bernardo Moraes, Professor de Direito Civil e Direito Romano da Faculdade de Direito da USP

 

Artigo, originalmente, escrito para o Portal Contraditor

 

“Nella storia non c’è infatti solo il diritto che vogliamo storicamente conoscere, ma ci siamo anche noi, nella nostra globale e attuale storicità, che è la storicità di un’esperienza storicamente condizionata e condizionante: la nostra esperienza. Ed in questa esperienza c’è la nostra scienza giuridica, una delle tante che sono nella storia” (Riccardo Orestano, Progetto di una introduzione allo studio della scientia iuris)[1].

 

O que identifica um jurista como romanista? O fato dele estudar seriamente o Corpus Iuris Civilis? Será? Acúrsio seria romanista. Bártolo seria romanista. Francisco de Vitória seria romanista. Cujácio seria romanista. Grócio seria romanista. Pothier seria romanista. Savigny seria romanista. Teixeira de Freitas seria romanista. Pontes de Miranda… não! Pontes de Miranda nem assim seria romanista… Mas e os demais? Foram verdadeiramente romanistas?

 

Sempre me causou certo desconforto o qualificar alguns juristas como romanistas. É claro que para um romanista do século XXI, diante dos frequentes (e infundados) ataques à disciplina, funciona como um excelente argumento de autoridade enumerar infinitos importantes cultores do direito como parte do “mesmo time”. Mas a “verdade verdadeira” é que, por esse critério, poucos juristas poderiam ser qualificados diferentemente até início do século XX. De fato, até então, o Corpus Iuris Civilis consistia no “fio condutor” de toda evolução do pensamento jurídico.

 

E, mesmo que considerássemos o período anterior ao século XX, será que os citados juristas estudavam a referida compilação de Justiniano com os mesmos métodos e objetivos? Evidentemente não. Mas se isso é tão evidente, por que ainda hoje alguns insistem (mesmo em pós-graduação) em citar, por exemplo, os monumentais comentários às Pandectas (vulgo: Digesto) de Glück (Ausführliche Erläuterung der Pandekten) para fundamentar a reconstrução do pensamento jurídico dos romanos? Ou, ainda mais frequentemente, o “Sistema do Direito Romano Atual” (System des heutigen römischen Rechts) de Savigny para o mesmo fim? A suposta obviedade dos títulos de referidas obras esconde uma ideia: não há, nem nunca houve, “um direito romano”; há, e sempre houve, “vários direitos romanos”. Riccardo Orestano foi um dos principais (verdadeiros) romanistas a explicitar essa ideia no século XX.

 

Sua principal e mais conhecida obra, “Introduzione allo studio del diritto romano”, mais do que apresentar os principais institutos jurídicos romanos (como uma leitura açodada do título poderia indicar) pretendeu criticar a metodologia então dominante. O trabalho teve sua versão final publicada no ano anterior à morte do autor (ocorrida no ano de 1988), mas as principais linhas de seu pensamento já se apresentavam minimamente claras desde a primeira versão na década de 1950, quando publicou o curso ministrado na Universidade de Gênova (uma nova edição veio à luz cinco meses atrás, agora em 2021); no subtítulo do livro já havia a menção expressa a um conceito-chave de seu pensamento: “esperienza giuridica”[2].

 

Reformulando as principais linhas de Capograssi e de seu pai, Francesco Orestano (mais do primeiro do que do segundo), ele liga expressamente àquele conceito a noção de historicidade, dizendo que o estudo de uma experiência jurídica (do passado ou do presente) deve necessariamente ser “histórico” (ou seja, a experiência jurídica coincide com a experiência histórica). A “nossa experiência” é historicamente condicionada, mas também condicionante.

 

Ora, a admissão de que é historicamente condicionada traz uma recusa ao racionalismo jusnaturalista (em geral, uma recusa a abstrações e generalizações de caráter universal) e a desnecessidade de ter de justificar qualquer estudo jurídico de caráter histórico (sua utilidade é pressuposta). E ser condicionante leva necessariamente à conclusão de que uma experiência do passado pode ter leituras diversas em função da época e contexto em que é estudada.

 

Por isso, como já se disse, não houve “um direito romano”; houve “vários direitos romanos” ao longo da história, em função das várias percepções que a antiga experiência jurídica romana teve, condicionadas às experiências jurídicas de cada intérprete.

 

Daí ter Orestano identificado ao menos cinco sentidos da expressão “direito romano” (que não podem compor uma unidade): (i) direito romano como “direito romano dos romanos”; (ii) direito romano como “tradição romanística”; (iii) direito romano como “direito comum europeu”; (iv) direito romano como “pandectística”; (v) direito romano como “romanística”[3] (evidentemente esses cinco “direitos romanos” não esgotam a riqueza de sua história).

 

Voltando ao exemplo de Savigny, pesquisadores muito comumente o citam em trabalhos para aclarar o “direito romano dos romanos”, mas sem a percepção do contexto em que ele construiu seu pensamento (“direito romano da pandectística”). Semelhante problema ocorre com relação a Jhering, cujo famoso trabalho acerca da posse é frequentemente mencionado para explicar a noção romana de “possessio”… Uma clara impropriedade…

 

Ligado a esse aspecto, principalmente entre civilistas que usam o direito romano como argumento de autoridade ou prova de erudição (mas também entre alguns romanistas), é recorrente o emprego de traduções de obras clássicas de romanistas (dos séculos XIX e XX) sem a consciência da experiência jurídica pessoal do tradutor, o que deturpa ainda mais o emprego dessas obras[4] (no Brasil incontestavelmente a doutrina alemã dos séculos XIX e XX chegou até nós em regra através de traduções – realidade que tem mudado significativamente nos últimos anos).

 

Ademais, a ideia de “experiência jurídica” leva necessariamente o intérprete “do passado” a ter de considerar a sociedade da época e seus pressupostos culturais:  “tutto ciò che può esser ricondotto a questa esperienza è significante e rilevante: ogni elemento, ogni circostanza, ogni aspetto, ogni dato si avvalora come costitutivo dell’esperienza stessa”[5] (“não é possível conhecer a criação independente do criador”[6]). Assim, até mesmo ao interno do “direito romano dos romanos” devem ser identificadas várias experiências jurídicas (o que se percebe, com o evoluir do pensamento de Orestano, é uma lenta transição da ideia capograssiana de “experiência jurídica” para uma concepção de “experiências jurídicas”).

 

Na prática é igualmente uma noção aparentemente simples e aceita pela maioria dos manuais brasileiros de direito romano, que normalmente principiam com a apresentação de periodizações variadas dos mais de 13 séculos de história romana. Contudo, o fato de o que se convencionou chamar de Corpus Iuris Civilis ser a fonte principal de conhecimento do direito romano faz com que a maioria dos manuais nacionais perca a noção de que a compilação justinianeia é “ponto de chegada” (de síntese) do direito romano, mas também “ponto de partida” dele (conforme se pretenda reconstruir, respectivamente, a experiência jurídica justinianeia ou a experiência jurídica anterior, normalmente clássica).

 

No Brasil, ainda muitos se deixam influenciar pela concepção de um direito romano anterior à primeira codificação civil nacional (o Código Civil que entrou em vigor no ano de 1917). Natural, portanto, a tendência de que manuais de direito romano sejam, na verdade, manuais de direito romano justinianeu (ainda que façam, aqui e acolá, referências a momentos anteriores) – tendência que era clara também na Europa dos anos de 1950 e que Orestano expressamente criticava.

 

De forma geral, percebe-se que, na tensão dialética entre dogmatismo e historicismo, manuais que privilegiam o primeiro valorizam mais as fontes justinianeias e manuais que pendem para o segundo aspecto procuram valorizar mais outras fontes. O importante, contudo, é reforçar que os verdadeiramente romanistas são os especialistas no “direito romano dos romanos”. Os especialistas nos demais “direitos romanos” são historiadores do direito ou civilistas.

 

Não quero com isso dizer que os romanistas são mais importantes do que os últimos. Só digo que não podem ser confundidos, embora estejam claramente conectados em vários sentidos.

 

Nos corredores da SanFran (como é conhecida, informalmente, a Faculdade na qual me formei[7]), é famosa e ainda persistente a provocação entre os que dizem que um bom civilista é um bom romanista, e os que respondem serem os bons romanistas necessariamente bons civilistas.

 

Ora, um bom romanista deve ser um bom civilista, sob pena de ser excessivamente histórico (se não conhecer minimamente a dogmática contemporânea, não poderá ser um bom romanista), mas um bom civilista não é necessariamente um bom romanista, pois não basta conhecer a dogmática moderna: precisa ser cônscio da(s) experiência(s) jurídica(s) romana(s).

 

E a(s) experiência(s) jurídica(s) romana(s) deve(m) ser conhecida(s) em toda a sua riqueza. “Né io voglio negare che una vasta e profonda conoscenza del diritto odierno, cioè del diritto vivo non abbia a giovare per la conoscenza di un diritto storico: ma nego che possegga una conoscenza vasta e profonda del diritto odierno il giurista che non abbia coscienza della storicità delle sue categorie e dei suoi concetti, che non sappia risalire via via nel tempo a rintracciarne il punto di emersione… che non sappia valutarne il profilo e la portata originaria, che non sappia in sostanza, distinguere la serie di esperienze attraverso le quali il pensiero giuridico si è svolto, temprato, affinato”[8].

 

Predomina a dogmática sobre a história. O viés histórico pode, contudo, colaborar para o revigorar do estudo do direito romano pelos brasileiros, em sua peculiar leitura da mais importante experiência jurídica da Antiguidade[9].

 

[1] R. Orestano, Progetto di una introduzione allo studio della scientia iuris, in Scritti IV (saggistica), Napoli, Jovene, 1998, p. 2.210

 

[2] R. Orestano, Introduzione allo studio storico del diritto romano e parte speciale su talune concezioni del diritto nell’esperienza giuridica romana, Torino, Giappichelli, 1953.

 

[3] R. Orestano, Introduzione allo studio del diritto romano, Bologna, Mulino, 1987, p. 457.

 

[4] “Toda tradução é uma interpretação, uma criação do tradutor: ela pressupõe escolhas interpretativas” – B. B. Q. Moraes, Manual de introdução ao Digesto, São Paulo, YK, 2017, pp. 365 e ss.

 

[5] R. Orestano, Introduzione allo studio [1987] cit., p. 359.

 

[6] “In pratica, cioè, ciascuno deve convenire che non è possibile conoscere la creazione indipendentemente dal creatore; che non è possibile afferrare nella sua integrale pienezza il diritto romano, o un qualsiasi sistema, nel quale sono rappresentati insieme realtà storiche contingente e verità e principi costanti, se non mediante una sintesi unitaria che permetta la comprensione totale dell’opera e del suo costruttore: così come non si può capire un capolavoro, se non mediante una conoscenza completa dell’opera d’arte e dell’artista che la concepì e l’eseguì” – P. de Francisci, Idee per un rinnovamento della scienza del diritto, in Rivista del Lavoro Commerciale 1 (1939), p. 14.

 

[7] Faculdade de Direito (FD – “Largo São Francisco”) da Universidade de São Paulo (USP).

 

[8] P. De Francisci, Questioni di metodo, in Questioni di metodo – Diritto romano e dogmatica odierna, 2ª ed., Como, New Press, 1997, p. 101.

 

[9] Para mais detalhes acerca de todas essas questões, cf. B. B. Q. Moraes, Dogmática e história no estudo do Direito Romano: a experiência didática brasileira, in Interpretatio Prudentium IV-2 (2019), p. 61 e ss. [disponível em https://www.bernardomoraes.com/artigos].

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