Ana Maria de Oliveira Nusdeo, professora de Direito Ambiental da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e e-presidente e diretora do Instituto o Direito por um Planeta Verde
Os tribunais tiveram profunda importância na evolução da proteção ambiental no Brasil desde que a Constituição consagrou o direito ao meio ambiente equilibrado em 1988, sedimentando teses e conferindo-lhe efetividade ao determinar o cumprimento das normas ambientais. Os ataques e desmontes sofridos a partir de 2019, tão noticiados, mas fracamente reprimidos, puseram o papel dos tribunais em outro patamar. Agora em 30 de março, estão na pauta do STF sete ações em matéria ambiental que, em linhas gerais, questionam se diferentes medidas de enfraquecimento ambiental violam o direito ao meio ambiente estabelecido pela Constituição (Artigo 225).
Na marcha da boiada, tornou-se clara a promoção de uma política antiambiental no governo Bolsonaro, que se desdobra em cinco linhas de atuação, como aponta o Professor Conrado Hubner Mendes (https://www1.folha.uol.com.br/colunas/conrado-hubner-mendes/2021/04/bolsonaro-convida-biden-paradesmatar.shtml?origin=folha). As ações em questão tentam dar respostas às investidas do governo.
A primeira dessas linhas de atuação é a massiva edição de normas infralegais (resoluções, portarias, etc.) que flexibilizam e enfraquecem os controles ambientais. A Ação direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6808 questiona a Medida Provisória que permite a concessão automática de licença ambiental de atividades de risco médio. Já a ADI 6148 impugna a Resolução 491/2018, que estabelece padrões insuficientes para o controle da poluição do ar.
Em segundo lugar, tem-se a evisceração dos órgãos ambientais, com a forte redução de sua capacidade de atuação (remoção de funcionários; diminuição e não execução de orçamento). Várias das ações em questão direcionam-se a esse problema. A Ação Declaratória de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 59 pede a reativação do Fundo Amazônia, enquanto a ADO 54 questiona a omissão do governo federal no combate ao desmatamento e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 760 demanda a retomada do
Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia (PPCDAm). Ainda nesse campo, a ADPF 651 impugna o decreto que excluiu a sociedade civil do conselho deliberativo do Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA).
A terceira é a militarização das funções da administração civil especializada, com operações militares inefetivas e custosas substituindo operações pelos órgãos ambientais legalmente competentes para a função. Trata-se aí das GLOs realizadas com alto custo e baixos resultados, objeto da ADPF 735, que contesta a Operação Verde Brasil 2 e o uso das Forças Armadas no combate a ilícitos ambientais
Em quarto lugar, o professor se refere a um multifacetado programa de desinformação, com o esvaziamento de órgãos públicos de produção de conhecimento, como o INPE, o ICMBIO, o IBGE, ao mesmo tempo em que informações falsas são disseminadas.
Finalmente, o há o estímulo à delinquência ambiental, acenando-se com a não aplicação da legislação. E, graças à audácia da primeira estratégia, a aplicação de multas ambientais hoje é travada por um procedimento de audiências prévias que não andam, acarretando a possibilidade de prescrição. E, quando andam, a nova regulamentação concede generosos descontos aos infratores.
Se, em tese, algumas dessas ações se dão dentro de um âmbito formal de atribuições do Poder Executivo, nota-se claramente serem articuladas para o desmonte da política e produção dos efeitos contrários às finalidades da legislação e da Constituição.
Se a estratégia governamental acima descrita por vezes é francamente ilegal e abaixo do nível de dignidade dos cargos públicos (caso da disseminação deliberada de informações falsas e incitação a práticas ilícitas), a resposta possível da Corte Constitucional brasileira tem a possibilidade de contrapor-lhes obstáculo prático, com a declaração de inconstitucionalidade da atuação que descrevem, a emissão de determinações de obrigações de fazer, no sentido de retomar atuação protetiva do meio ambiente ou declarar a ilegalidade de alterações regulamentares promovidas. Além de respostas específicas aos diferentes pedidos, o STF terá a oportunidade de adensar o debate jurídico acerca dos temas colocados nas ações em julgamento.
Algumas delas têm como objeto problemas inseridos no contexto do tema das mudanças climáticas, uma vez que o desmatamento da Amazônia, para além do ponto de não retorno nas mudanças do ecossitema, é uma contribuição dramática à uma mudança deletéria das condições do clima. Da mesma forma, também o é o aumento da poluição atmosférica, combinando os danos decorrentes dos poluentes aos danos climáticos, aumentando os impactos nocivos à saúde.
Essas ações judiciais colocam o Brasil no palco de um movimento – a litigância climática – que eclodiu em vários países do globo, relacionado a um conjunto de ações judiciais e administrativas envolvendo questões relacionadas ao tema das mudanças climáticas. As demandas propostas, em vários países, desafiam os governos (e até as empresas) ao aumento da ambição nas suas políticas ambientais. Aqui no Brasil, grande parte do esforço investido na litigância busca manter a legislação existente.
Digno de nota que todas foram propostas por partidos políticos e organizações não governamentais. Embora o acesso à Justiça e exercício desse direito pela sociedade seja positivo, reflete também a omissão no âmbito do Ministério Público Federal, carro chefe na missão de proteger a Constituição (Artigo 129, II da Constituição Federal).
Sob o ponto de vista do direito constitucional e da relação institucional entre os poderes, a oportunidade aberta pelo STF não é menos importante. A questão jurídica central por trás de boa parte dos julgamentos que serão realizados é a omissão inconstitucional do dever do Poder Público de proteção ao meio ambiente. Se o tema da omissão inconstitucional já foi enfrentado outras vezes, referia-se a situações nas quais certos direitos não receberam suficiente prioridade nas políticas públicas, num cenário de escassez orçamentária. Daí o surgimento de teses, como a reserva do possível, que buscaram conciliar a implementação dos direitos constitucionais em questão e os custos das providências exigidas. No caso das ações ora em pauta, a omissão se dá em outros termos, e se relacionam a um projeto contrário à política e à efetivação dos direitos constitucionais. Por certo, a declaração de sua inconstitucionalidade fortalecerá a Constituição e os direitos lá colocados, sem que o Judiciário desborde os limites de seu poder. A propósito pode-se tomar empresada a frase celebrizada por Michelle Obama: “They go low, we go high”.