José Eduardo Faria, professor titular no Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito e decano da Faculdade de Direito da USP
Mais antiga instituição de ensino superior do país, a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) sediou recentemente um evento importante: a criação do Colégio Brasileiro de Faculdades de Direito Públicas – uma iniciativa destinada a defender a universidade pública e gratuita na área do conhecimento jurídico em um período histórico em que ele se encontra na encruzilhada entre melhorar a qualidade dos cursos de graduação e de pós-graduação e inovar em termos teóricos.
Historicamente, a ideia de universidade pública no país está fortemente associada à USP, que foi criada nos anos de 1930 por liberais ilustrados que contrapunham os valores de racionalidade e modernidade às oligarquias agrárias do Sudeste. Ainda que a iniciativa tenha expresso um poder de classe travestido de interesse geral da nação, essa elite pensava numa convergência entre universidade pública, coisa pública e homem público. Esse tipo de liberalismo conferiu à ideia de público o estatuto de um valor, concebendo a universidade pública como o locus adequado para a discussão e a construção de valores e como instrumento para a modernização institucional do país.
O modelo então adotado por essa elite ilustrada foi o da Universidade de Berlim, desenvolvido em 1819 por Wilhelm von Humboldt, que considerava indissociáveis ensino, pesquisa e liberdade acadêmica, tendo em vista uma sociedade solidária e desenvolvida. A universidade humboldtiana propunha liberdade de ensino, liberdade de pesquisa e autonomia tanto financeira quanto intelectual. A dependência da universidade pública em relação ao Estado deveria limitada ao mínimo. Assim, o desafio dos criadores da USP foi conciliar as exigências internas das diferentes áreas de especialização da ciência com as exigências da sociedade e do Estado brasileiro.
Para vencer esse desafio, a estratégia foi criar uma faculdade de filosofia como alma mater da instituição. A partir daí, a universidade pública passou a ser vista como locus autônomo de poder político e econômico. Como espaço de liberdade de criação, de pensamento independente e de resistência. E como lugar de iniciativas críticas e de conhecimento, o que lhe conferiu legitimidade perante outras instituições sociais. Ao se inspirar nesse modelo, o liberalismo ilustrado considerava a opção pela indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão como dever cívico.
Se deu certo nas primeiras três décadas da trajetória das universidades públicas brasileiras, esse modelo passou a enfrentar dificuldades a partir dos anos de 1960. Os primeiros problemas surgiram com o golpe militar, em março de 1964, e o advento do Ato Institucional 5, quando muitos professores de universidades públicas – especialmente os da USP – foram aposentados, perseguidos e exilados, e os principais cargos de direção foram entregues a professores servis e politicamente alinhados aos militares. Desse modo, a ditadura levou a meritocracia, a excelência acadêmica e a consciência crítica a serem substituídas pela crescente massificação do ensino superior público, por meio de um viés profissionalizante que privilegiava o conteúdo utilitário do conhecimento. Diante das pressões por mais vagas nas universidades públicas, a resposta da ditadura foi ampliar a oferta de vagas, mas sem que isso representasse um investimento significativo. O “máximo de rendimento com menor inversão” era uma das premissas do acordo MEC/Usaid, então firmado.
A partir daí, a universidade pública brasileira passou a ser crescentemente dominada por uma tecnoburocracia que converteu o economicismo em padrão de uma gestão racional e produtivista. Nessa linha, os docentes que não seguiam as novas regras – que dão enorme peso a controles quantitativos de produção acadêmica – passaram a ser desqualificados como “improdutivos”. O que se esperava então de um gestor acadêmico é que se orientasse por padrões derivados de uma visão técnico-econômica de universidade pública.
Ao mesmo tempo, a ditadura também passou a enfatizar o papel do ensino superior privado como “função complementar”. A ideia era estimular a expansão do ensino privado com o objetivo de desonerar parte da responsabilidade educativa do poder público, o que resultou, na prática, em um nivelamento por baixo das exigências pedagógicas. Na época, foram beneficiados grupos empresariais que já controlavam o ensino básico, sob a justificativa de que teriam maior capacidade gerencial e organizacional do que as universidades públicas. Só entre 1968 e 1972 o então Conselho Federal de Educação aprovou 759 solicitações de grupos privados. Naquele momento, a ditadura concebia a universidade pública como simples formadora de recursos humanos, conforme a ideologia do desenvolvimento acelerado e da doutrina de segurança nacional formulada pelos militares.
Terminado o período ditatorial, a partir das décadas de 1980 e 1990 vieram as pressões dos organismos multilaterais. Relatórios do Banco Mundial, por exemplo, defendiam a substituição da gratuidade do ensino pela abertura de linhas de crédito para os estudantes, que pagariam suas dívidas com o governo após sua formatura e início de suas atividades profissionais. Esses relatórios também propunham a estratificação das universidades públicas por mecanismos de avaliação, recomendavam a redução de repasses financeiros estatais e ainda pressionavam as universidades públicas a gerar receitas próprias, mediante a venda de serviços e pesquisas à iniciativa privada.
A situação se agravou após a crise do petróleo, na década de 1970, que deflagrou a busca por novas fontes de energia e de matéria prima e abriu caminho para uma ideia que ganharia força na transição do século 20 para o século 21: se o mundo é cada vez mais competitivo e globalizado, a universidade pública teria de se converter numa organização prestadora de serviços, por meio de “fundações de apoio” especialmente criadas com esse objetivo. O efeito prático foi um processo que o sociólogo americano Robert Merton chamou de “perda de inocência” e outros cientistas sociais classificaram como “pacto fáustico”. Ou seja, a relativização das funções sociais da universidade pública tendo em visto os interesses maiores da comunidade e a ênfase ao ensino como serviço e à pesquisa como mercadoria.
Como era inevitável, a exploração comercial de novas tecnologias e de novos produtos gerados para o “mercado” acabou desviando a universidade pública da ideia de bem comum e gerando uma enorme polêmica que perdura até hoje. Afinal, a quem deveria servir a pesquisa básica: à sociedade em seu conjunto? Ou, então, a grupos políticos, econômicos e corporativos capazes de capturá-la, segundo seus interesses imediatos e até efêmeros?
Esse é o contexto no qual ocorreu o evento da criação do Colégio Brasileiro de Faculdades de Direito Públicas, na São Francisco. Com base na premissa de que a privatização e a mercantilização do ensino superior e da produção acadêmica tendem a esvaziar a ideia de função social da universidade pública, essa foi uma resposta dessas faculdades às crescentes injunções do chamado do chamado “mercado educativo”, cujas principais características são (i) a venda, por parte das universidades globais americanas e europeias, de pacotes de pós-graduação, por meio de aulas presenciais, de aulas à distância ou de franchising; (ii) a certificação dos títulos expedidos pelas universidades locais feita pelas universidades globais; (iii) o surgimento de universidades de empresas e universidades corporativas; (iv) a disseminação de métricas de eficiência advindas do sistema de ensino do Norte global; (v) a naturalização de que o ensino superior público educação é um negócio como qualquer outro, que tem de ser posto no regime de competição e dar retorno, implicando assim a substituição de órgãos colegiados por administradores profissionais; (vi) a redução do ensino superior a um processo de formação de mão de obra especializada segundo as exigências de mercado e a uma linha de transmissão de aptidões técnicas, com a transferência da meritocracia para escolas especializadas, colocadas fora do alcance do ensino superior massificado.
A iniciativa das faculdades de direito públicas ocorreu num momento em que a maioria de seus professores está consciente de que, se determinadas funções públicas podem ser privatizadas, determinadas responsabilidades não podem – entre elas a educação pública em todos os seus níveis. É por isso que a atividade científica nas universidades públicas hoje se desenvolve numa sociedade cada vez mais atenta às responsabilidades dos cientistas – e esta atenção envolve tanto questões suscitam dilemas éticos quanto a supervisão do que se faz e do que pode ser feito com recursos públicos.
Por fim, o evento da São Francisco jogou luz sobre outras questões não menos importantes. Uma delas diz respeito ao fato de que, como as salas de aulas são marcadas por uma tensão entre pensamento e realidade, é necessário afastar o risco de que a tradicional à lógica formal e à tecnicalidade jurídica leve o professorado a continuar falando da realidade como se ela fosse um mundo imaginário. Outra questão diz respeito ao fato de que conhecimento jurídico não é apenas sinônimo de prestígio e autoridade, mas instrumento de poder institucional e de controle social, ora reproduzindo e justificando um padrão de organização econômica, ora criticando suas estruturas para torná-las mais justas e equitativas. É justamente daí que as faculdades de direito públicas extraem sua força, sua autoridade e sua legitimidade.