José Eduardo Campos Faria, professor titular de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP
Recebido com um certo ceticismo por economistas de formação liberal e sob críticas de que nada mais é do que uma retomada de práticas antigas e ineficazes em matéria de programação econômica e desenvolvimento induzido pelo poder político, o programa Nova Indústria Brasil, lançado pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, recolocou na agenda questões antigas, mas fundamentais para o futuro do País. Elas envolvem, por exemplo, as atribuições do Estado, a qualidade das instituições, as obrigações do setor público, as funções estratégicas de um governo eleito democraticamente e a percepção, por seus dirigentes, das condições mínimas necessárias para a formulação de um projeto nacional de longo alcance.
Essas questões também abrangem discussões aprofundadas e interdisciplinares sobre o vigor do Estado brasileiro e sobre as dificuldades a serem enfrentadas para estancar e reverter a tendência de queda da participação do setor industrial no Produto Interno Bruto (PIB) do País observada nas últimas décadas – hoje este setor representa apenas 10% do PIB nacional, ante 30% no início da década de 1980. E permitem, ainda, rever importantes projetos de industrialização que foram formulados e implementados nos tempos da ditadura militar, especialmente entre 1975-1979, período em que o presidente Ernesto Geisel lançou o ambicioso 2º Plano Nacional de Desenvolvimento (que analiso em livro publicado há um mês pela editora Andrago, intitulado Direito, autoritarismo e mudança socioeconômica). E, também, nos governos petistas de Lula-2, entre 2007 e 2010, e Dilma Rousseff, entre 2011 e 2016, durante o Brasil redemocratizado.
Uma das indagações formuladas por economistas de formação liberal e do chamado capitalismo induzido pelo Estado é relacionada à reintrodução de medidas protecionistas de exigências de conteúdo local, à concessão de mais subsídios setoriais, à concessão de subvenções e créditos tributários e à falta de clareza, de consistência técnica e de segurança jurídica dessa política desenvolvimentista. Como os livros de história brasileira contemporânea apontam, problemas como falta de foco preciso, ausência de prioridades e de indicadores confiáveis, proteção de empresas escolhidas sem critérios técnicos e insegurança jurídica, ocorridos naqueles três governos – principalmente os petistas -, foram objeto de importantes questionamentos feitos pela equipe técnica do Tribunal de Contas da União (TCU) e de polêmicas arguições de inconstitucionalidade levadas às cortes superiores do Poder Judiciário. Nesse sentido, de que modo serão controlados os custos e com base em quais critérios serão selecionados os setores favorecidos do Nova Indústria Brasil?
Na mesma linha, o quanto de pesquisa empírica consistente e o quanto de sólidos fundamentos técnicos e econômicos respaldaram o diagnóstico com base no qual foi elaborada essa nova política de desenvolvimento industrial? Afinal, sem escala de prioridades, sem metas claras e consistentes, sem meios e instrumentos bem definidos, sem capacidade administrativa e sem uma avaliação permanente de resultados, as boas intenções podem levar a resultados medíocres para a atividade industrial, mas com custos fiscais elevados que prejudicam as contas públicas e, por consequência, inibem a atratividade de investimentos estrangeiros.
Uma terceira indagação é saber quais serão as premissas e os critérios que nortearão a escolha dos setores industriais e dos grupos empresariais a serem beneficiados com estímulos, subvenções, créditos tributários e empréstimos. Evidentemente, opções equivocadas ou então condicionadas por pressões corporativas e grupos de interesse dificultarão a criação de novas combinações produtivas, de novos processos e de novos produtos. Dito de outro modo, podem acarretar justamente o oposto do que se almeja – ou seja, sucateamento do parque industrial do País e redução da produtividade da economia brasileira, acelerando com isso a reprimarização de sua pauta de exportações.
Em suma: ainda que à primeira vista pareça mais do mesmo já visto em governos anteriores, como os de Geisel, Lula-2 e Dilma-1, o programa Nova Indústria Brasil depende de um enorme esforço de coordenação governamental para ser implementado com sucesso. A dúvida é saber se o tipo de “política industrial ativa” adotada por um governo que concebe o Estado como planejador, indutor, estimulador do desenvolvimento e alocador de recursos é compatível com uma economia que se mundializou assimetricamente. E, também, se é compatível com um período histórico de aceleração da tendência da sociedade contemporânea de, em decorrência das contínuas e cada vez mais rápidas transformações tecnológicas, dividir-se em sistemas cada vez mais funcionalmente diferenciados. Como lembram os cientistas políticos e sociólogos de formação funcionalista, esses sistemas tendem, com o passar do tempo, a se subdividirem em subsistemas ainda mais diferenciados – e assim por diante.
Em face da crescente complexidade da sociedade contemporânea, de seu subsequente policentrismo decisório e de seu pluralismo normativo, os Estados-nação estão enfrentando cada vez mais dificuldades para impor uma regulação político-jurídica hierárquica ou de feições piramidais nos limites de seus respectivos territórios. Em primeiro lugar porque, à medida que o espaço financeiro foi se tornando homogêneo na economia mundializada e as instituições jurídico-políticas dos Estados forjadas com base no princípio da soberania foram se enfraquecendo, países de renda baixa e média – como é o caso do Brasil – não têm força política e condições materiais suficientes para definir projetos próprios de crescimento que lhes assegurem maior capacidade e autonomia decisórias.
Em segundo lugar, porque os sistemas industrial, comercial, financeiro, científico e tecnológico e suas respectivas redes de subsistemas tendem a buscar autonomia regulatória nos diferentes espaços e áreas transnacionais em que atuam. E, em terceiro lugar, porque o Brasil tem baixa produtividade, baixa competitividade industrial e baixa capacidade de integração nas cadeias de suprimentos globais – há 20 anos, por exemplo, o País detinha quase 3% da indústria mundial; hoje, contudo, detém apenas 1,8%.
Quatro décadas após o fracassado 2º PND, treze anos após o término do governo Lula-2 e seis anos após o impeachment de Dilma, o Estado brasileiro continua enfrentando um paradoxo: seus dirigentes têm ciência de sua crescente perda de poder, decorrente, entre outros fatores, da tendência de autorregulação das intrincadas redes do subsistema econômico para muito além das fronteiras nacionais. Ao mesmo tempo, têm enfrentado dificuldades para formular mecanismos e desenvolver ferramentas para solucionar os problemas com que se defrontam no plano econômico interno.
Apesar desse paradoxo, não há dúvida que o Brasil há tempos precisa de um projeto de desenvolvimento industrial. Também é óbvio que esse projeto não pode ser uma simples repetição ou reatualização de experiências anteriores. Todavia, levando em conta as adversidades apresentadas no cenário apontado acima e as mudanças geopolíticas e geoeconômicas que estão em curso no mundo contemporâneo, obrigando as cadeias de produção globais a terem de se ajustar a tempos de trânsito marítimo mais longos, de que modo o governo Lula-3 poderá surpreender? De que maneira poderá afastar o risco de se limitar a repisar estratégias e medidas que não deram certo nos governos Geisel, Lula-2 e Dilma-1?
Ainda que várias passagens do programa Nova Indústria Brasil ainda estejam obscuras ou primem pela vagueza, sendo por isso difíceis de serem analisadas, até que ponto a proposta de novos “ecossistemas produtivos” capazes de estancar a desindustrialização e reduzir a pobreza, por um lado, e a definição de “missões transversais” em seis grandes áreas a serem postas em prática de modo sistêmico, por outro lado, não podem surpreender positivamente, abrindo caminho para o desenvolvimento de mecanismos e ferramentas que propiciem inovações, ganhos de competitividade e maior integração no comércio mundial?