Carlos Portugal Gouvea, professor de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP
O Ibram (Instituto Brasileiro de Mineração) ajuizou no STF (Supremo Tribunal Federal) a ADPF 1.178, buscando impedir que municípios brasileiros litiguem no exterior em ações de indenização contra mineradoras estrangeiras devido a desastres ambientais. O argumento é que os municípios não têm legitimidade para litigar diretamente perante jurisdições estrangeiras. A inicial da ação apresenta diversos problemas técnicos quanto ao seu cabimento.
Ademais, desconsidera aspectos essenciais sobre a autonomia constitucional dos municípios como entes federativos e como pessoas jurídicas de direito público. A ADPF 1.178 não busca “evitar ou reparar lesão a preceito fundamental”, como previsto na Lei 9.882/1999, que regulou o artigo 102, § 1º da CRFB, mas sim atender ao interesse particular de uma única mineradora estrangeira. Esta companhia figura no polo passivo de uma ação coletiva nas cortes do Reino Unido, com uma audiência importante prevista em algumas semanas. Ou seja, não só é uma ação individual disfarçada de controle “abstrato”, mas também carrega enorme carga de oportunismo, violando a boa-fé processual.
Primeiro, o erro mais flagrante. A ADPF tem como requisito essencial a “subsidiariedade” prevista no artigo 4º, §1º, da Lei 9.882/1999: “não será admitida arguição de descumprimento de preceito fundamental quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade”.
O próprio Ibram reconhece na ADPF 1.178 que não cumpriu o requisito, pedindo que o STF o dispense, pois “não há, dentre as ações constitucionais, instrumento jurídico que permita remediar a lesão”. Tal dispensa só seria aplicável caso outros meios não gerassem um resultado de caráter vinculante contra todos (erga omnes).
Tais situações são absolutamente excepcionais e não se enquadram no caso. Como destacou o ministro Luiz Roberto Barroso na ADPF 533, situações individuais com particularidades não homogêneas não podem ser objeto de uma arguição de descumprimento de preceito fundamental. Aqui, o interesse é o das mineradoras de não serem responsabilizada pelos danos causados.
Municípios violados
Os municípios brasileiros estão buscando a reparação perante tribunais estrangeiros pelos prejuízos sofridos, privando seus cidadãos de serviços públicos essenciais, como saúde e educação. Fica claro que quem tem um “preceito fundamental” violado são os municípios e não as mineradoras.
A ADPF apenas se justifica caso nenhum outro meio, judicial ou administrativo, pudesse evitar o ato lesivo. O professor José Afonso da Silva ensina que as ADPF foram uma evolução do direito alemão, a partir de limitações em outras medidas judiciais, como a Popularklage (semelhante a Ação Popular) e o Verfassungsbeschwerde (semelhante ao Mandado de Segurança).
No caso presente, nenhuma medida foi impetrada contra os municípios e a tese arguida na ADPF 1.178 jamais foi ventilada previamente. Assim, tanto as ações populares para “pleitear a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos”, conforme previsto na Lei 4.717/1965, quanto os mandados de segurança seriam possivelmente cabíveis com a devida estratégia jurídica, dentre outras tantas medidas judiciais que se mostrariam mais adequadas.
Outro erro técnico na ADPF 1178 é não reconhecer que o artigo 21, inciso I, da CRFB, ao mencionar que compete à União “manter relações com estados estrangeiros e participar de organizações internacionais”, trata apenas da capacidade de manter relações diplomáticas e assinar tratados internacionais. Tal entendimento fica claro ao se analisar artigo 84 da CRFB, que lista as competências do Presidente da República exatamente neste sentido.
O artigo 21, inciso I, não tem relação com a representação perante o Judiciário no exterior de uma pessoa jurídica de direito público ou privado. Tal representação é possível pelo artigo 41 do CC, que reconhece os municípios como pessoas jurídicas de direito público. Os municípios são entes federativos autônomos nos termos do artigo 18 da CRFB e não cabe à União representá-los no exterior. A Constituição é clara em seu artigo 30, que cabe aos municípios “aplicar suas rendas” e “promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local”.
Se o município sofreu danos, cabe ao município buscar indenização. Ademais, a interpretação buscada pela ADPF 1.178 violaria a tradição municipalista do direito constitucional brasileiro, refletida em seu reconhecimento como entes federativos, o que é excepcionalidade no direito comparado. Se a tese do Ibram fosse aceita, isso limitaria a capacidade dos municípios de ter qualquer tipo de relação com pessoas jurídicas privadas e públicas no exterior.
Clóvis Bevilaqua, ao comentar o CC de 1916, já afirmava que o reconhecimento dos municípios como pessoas jurídicas lhes concedia autonomia para “adquirir direitos, criar obrigações e estar em juízo, como autores ou réus”. Essa autonomia permite aos municípios firmar contratos com companhias estrangeiras, importar medicamentos ou receber financiamentos para infraestrutura.
A tese do Ibram impediria municípios de contratarem com pessoas jurídicas estrangeiras. Muitos contratos de financiamento de infraestrutura envolvem organismos multilaterais como Banco Mundial ou BID. Seguindo essa lógica, os estados também não poderiam ter representação perante pessoas jurídicas estrangeiras. O esforço louvável de municípios e estados brasileiros para participarem de acordos para desenvolver vacinas contra a Covid-19 seria nulo, pois apenas a União poderia representá-los no exterior.
Além disso, não se poderia aplicar uma lógica discriminatória dizendo que os municípios poderiam ser representados perante o Judiciário brasileiro, mas não perante o Judiciário estrangeiro. O Art. 41 do CC corretamente não estabelece tal distinção, pois o artigo 5º, XLI, da CRFB prevê o combate a qualquer tipo de discriminação. Tendo a CRFB previsto o combate à xenofobia, não se pode adotar uma interpretação onde municípios estrangeiros poderiam acessar as cortes brasileiras e o contrário não seria permitido aos municípios brasileiros.
Existem inúmeras outras formas tradicionais de cooperação entre cidades de diferentes países, como as cidades-irmãs. No caso de São Paulo, a Lei Municipal 14.471/2007 considera cidades irmãs Milão, Lisboa, Buenos Aires, entre outras, e autoriza o município a firmar acordos bilaterais, convênios e programas de cooperação técnica. A visão do autor da ADPF 1.178 colocaria todos esses acordos em risco e posicionaria o Brasil como um pária internacional, recusando formas bem estabelecidas de cooperação entre povos.
Surpresa
Minha surpresa com os argumentos apresentados na ADPF 1.178 parte da posição de estudioso das teorias da personalidade jurídica. Uma das primeiras teorias sobre a personalidade jurídica foi a de Pufendorf, que caracterizou o Estado como pessoa moral. Os municípios brasileiros, como pessoas morais, agiram corretamente ao buscar ressarcimento pelos danos sofridos. Impedir tal comportamento, como desejam as mineradoras, seria imoral.
O Direito brasileiro restringe comportamentos imorais, garantindo que as ADPFs sejam usadas exclusivamente para proteger preceitos fundamentais e não interesses particulares. A CRFB impede práticas xenofóbicas que limitam a liberdade dos cidadãos brasileiros.
Se os municípios não podem ser representados no exterior, então, pela mesma lógica outras pessoas jurídicas também não poderiam. Em que momento as pessoas naturais também não poderiam ser representadas perante outros países? É o que aconteceu em muitos países autoritários, nos quais a autonomia não apenas dos entes federativos, mas de todas as pessoas foi tolhida em prol do “interesse nacional”, da “soberania” ou de tantos outros argumentos que justificaram violações de direitos humanos.
Usar esses sentimentos xenófobos para impedir municípios de regiões já bastante empobrecidas de serem indenizados por uma mineradora estrangeira em uma corte no exterior é uma crueldade. Poucas situações conseguem perfeitamente equacionar a imoralidade com a falta de técnica jurídica. Esta seria uma delas.