Maristela Basso, Professora de Direito Internacional e Comparado da Faculdade de Direito da USP
A harmonização do Direito do Comércio Internacional caminha a passos largo e uma de suas contribuições mais relevantes é, sem dúvida, o trabalho da Comissão de Direito do Comércio Internacional das Nações Unidas (Uncitral), criada em 1966. O objetivo deste organismo especializado da ONU é o de estabelecer, entre seus países membros, referencial ou standard legislativo mínimo com o qual as jurisdições, tanto de “Civil” como de Common Law”, possam balizar de modo coordenado e exequível temas e problemas complexos por meio de outras fontes de direito internacional, que não os tradicionais tratados e convenções submetidos, necessariamente, a longos processos de aprovação e ratificação em nível doméstico.
O comércio internacional tem sua lógica e agilidade próprias. Não pode se servir apenas das fontes tradicionais do direito internacional clássico. Daí a pertinência do recurso à “soft law”, ou seja, às leis modelos que dispensam o chamado “treaty-making-power” e possam ser aplicadas diretamente pelos diferentes órgãos da administração pública dos países signatários ou membros da organização que as elaborou.
Exemplo atual e oportuno, especialmente em um momento de crise econômica e sanitária, é a Lei Modelo da Uncitral sobre Insolvência Transnacional, de 1997. Elaborada quando o mundo globalizado demandava a transnacionalização das relações societárias, tanto do capital como das atividades econômicas, desafiando as velhas delimitações físicas e geográficas das fronteiras.
Paulatinamente, antigos mercados nacionais são substituídos por uma nova sociedade de mercado mundial, muito diversa daquela do século XVIII que deu origem ao Direito Comercial que inspirou o movimento das codificações.
Fenômenos disruptivos, complexos, setorizados e tecnológicos deram origem a estruturas societárias novas, subsidiárias, afiliadas, coligadas, “subholdings, “joint ventures” etc, e assim a novos tipos contratuais e modalidades de conclusão de negócios.
O Direito nunca precisou tanto se desterritorializar.
Os sistemas de solução de controvérsias empresariais passaram por enormes modificações e atualizações.
A cooperação judiciária nunca foi tão imprescindível e a rapidez das respostas mais cobiçada.
É nessa atmosfera que a Lei Modelo da Uncitral sobre Insolvência Transnacional é concebida, com o fim precípuo de trazer um marco legislativo mínimo e capaz de servir de referencial às jurisdições dos países membros que, por meio dele, possam, sem demora e entraves burocráticos, ajustar entre si procedimentos e respostas rápidas às intrincadas questões relacionadas aos concursos internacionais de credores e aos casos de insolvência transnacional.
Ao adotar a Lei Modelo da Uncitral, os países aceitam regras comuns para, dentre outras questões, os sempre presentes conflitos de leis relativas ao direito falimentar. Adotam instrumentos comuns de combate às enredadas fraudes internacionais e suas sequelas, de tal forma a aumentar a segurança jurídica para o comércio e os investimentos internacionais. Os ativos do devedor, são maximizados e mais protegidos.
A lei Modelo da Uncitral, por conseguinte, faz do Direito Falimentar um dos campos mais internacionalizados e harmonizados do Direito, haja vista que propõe estruturas comuns aos países membros agilizando o acesso aos poderes judiciários, facilitando o reconhecimento, assim como o deferimento de medidas, tornando a cooperação muito mais ágil do que em qualquer outro campo do Direito.
É graças à Lei Modelo que se permite o acesso direto aos tribunais do Estado onde tramita o processo principal, evitando-se, desse modo, o recurso a meios morosos como a expedição de cartas rogatórias. Isso porque a Lei Modelo garante aos representantes de processo de insolvência estrangeiro (pessoas e órgãos) e aos credores o direito de buscar os tribunais de um Estado e de solicitar a sua assistência.
Vê-se, portanto, que as leis, no campo do Direito Falimentar, podem ter efeito “extraterritorial”, que as controvérsias concursais se submetem ao princípio da pluralidade e que o conceito de soberania é mitigado.
A sistemática de classificação feita pela Lei Uniforme entre processo principal e secundário ou auxiliar segundo o critério do “centro dos principais interesses do devedor”, já é bastante significativo no que diz respeito a definição da competência (concorrente ou exclusiva) do juiz que julga.
O Direito Concursal Transfronteiriço, portanto, é uma realidade.
Mais de 40 países, dentre estes todas as grandes potências econômicas mundiais, já aderiram e adotam a Lei Modelo da Uncitral.
No Brasil, a Lei nº 14.112/2020, que alterou a Lei nº 11.101/2005, guarnece o país de normas em vigor e alinhadas aos princípios, diretrizes e procedimentos da Lei Uniforme da Uncitral. De tal forma que, não é exagerado dizer, prevalece, em nossa jurisdição, de forma altiva e soberana, um Direito Concursal (Falimentar) Transnacional, dotando os agentes econômicos multinacionais de maior segurança jurídica, e que este é parte integrante do Direito do Comércio Internacional.