Guilherme Guimarães Feliciano (*)
A humanidade atravessa um período histórico sem precedentes. Ainda que já tenha se defrontado com várias outras pandemias, algumas mais reconhecidas (como a da gripe espanhola, de 1918) e outras nem tanto (como a pandemia da Aids, com a qual aprendemos a conviver), por certo que a pandemia de covid-19 tem gerado uma situação caótica, em nível universal, como jamais se viu. Nessa senda, para que as atividades econômicas retornem ao pleno funcionamento e haja a manutenção dos empregos, bem como para que os tantos desempregados possam ter alento na procura por vagas de trabalho, com mínima segurança sanitária, exigem-se esforços concentrados, coligados e coordenados de Estado, empresa e sociedade civil, na direção do que dispõem os artigos 225, caput, 196 e 197 da Constituição da República. Com efeito, tanto o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado – incluído o do trabalho – como o direito à saúde pública são direitos de natureza pública, difusa e intergeracional, que encimam os interesses individuais e de classes (inclusive para os efeitos do art. 8º, caput, in fine, da CLT).
Eis o que nos leva ao primeiro grande debate no tema aqui ventilado: a obrigatoriedade da vacina. No que ora nos interessa, em particular, põe-se a questão: a empresa pode obrigar o seu empregado a tomar a vacina contra a covid-19? Na recusa, o empregador poderá dispensá-lo por justa causa, já que a recusa seria injustificada?
Quanto a essa questão, importa recordar que o STF discutiu a matéria no julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 6.586 e 6.587, relativas à Lei n. 13.979/2020, e do Agravo em Recurso Extraordinário n. 1.267.879, no qual se discutia o direito de recusa à imunização por convicções filosóficas ou religiosas. A compulsoriedade da vacinação está prevista no art. 3º, III, “d”, da Lei 13.979/2020, como medida possível de enfrentamento da covid-19; e, diga-se a propósito, tal lei fora sancionada, sem quaisquer vetos, pelo presidente Jair Bolsonaro (que depois passou a criticar abertamente tal obrigatoriedade). As precitadas ADIs questionavam o possível caráter compulsório das campanhas de vacinação. E, chancelando o voto do relator min. Ricardo Lewandowski, o Supremo reconheceu a constitucionalidade da vacinação compulsória, desde que não seja forçada ao nível físico (“manu militari”). Com efeito, ninguém pode ser constrangido, mediante força física, a comparecer a um posto de vacinação; nada obstante, como se trata de uma questão de saúde pública, o Estado, em todas as esferas de governo, pode adotar medidas indiretas para estimular todos à vacinação, impondo aos recalcitrantes medidas restritivas de direitos, como são as multas, o impedimento de frequentar determinados lugares e de fazer matrícula em escolas, a perda do direito ao salário-família etc.
Logo, não cabe falar propriamente em um “direito de recusa à vacinação”, qual direito absoluto, não sendo possível invocar a liberdade de agir ou o princípio da legalidade (até porque, na perspectiva do art. 5º, II, da CRFB, há lei autorizando a compulsoriedade) e tampouco a liberdade de consciência e de pensamento (o que inclui as convicções filosóficas, ideológicas e religiosas).
Isto tudo obviamente tem repercussões no âmbito laboral. Afinal, se o empregador – ou os demais empregados – poderia inclusive se ressarcir pelos danos derivados da contaminação provocada por quem conscientemente se recusa à vacinação, com maior razão poderá prevenir tais danos, a bem da própria lógica jurídica ínsita ao direito ambiental e da saúde pública. Com efeito, o empregador tem uma pesada carga de obrigações e deveres que deve observar, em cumprimento a toda a exaustiva legislação de proteção do meio ambiente laboral, sob pena de, inclusive, responder pelos danos decorrentes de acidente do trabalho e adoecimentos ocupacionais (art. 7º, incisos XXII e XVIII, da CF). Ora, a proibição de entrada dos trabalhadores que se recusam à vacinação (supondo-se, é claro, que já possam ser vacinados, em vista das escalas de prioridade), como proteção sanitária no âmbito dos prédios privados das empresas, funciona precisamente como medida indireta decorrente do extenso manancial legislativo presente na legislação trabalhista (vejam-se, e.g., CLT, arts. 158 e 200; NR 1, 1.4.2). É, inclusive, uma medida para a proteção dos demais trabalhadores da empresa, já que nem todos poderão tomar a vacina a um só tempo, à vista da própria escassez de doses.
Noutras palavras, no âmbito laboral, não é necessário aguardar uma lei específica determinando a vacinação compulsória, até porque a autorização legal geral já existe, como dito (Lei n. 13.979/2020, art. 3º, III, “d”). Logo, se o empregador tem de adotar até mesmo medidas de precaução (para além da mera prevenção), ele já tem, pelas próprias normas regulamentadoras do extinto Ministério do Trabalho (que derivam do art. 200 da CLT e seguem em vigor), o poder de exigir a vacinação do trabalhador para que este possa ingressar no espaço privado da empresa. É que das NRs “decorre” a obrigação – e o direito – de exigir de todos os seus empregados o uso de quaisquer equipamentos idôneos de proteção (a que se equiparam, por analogia, as vacinas); e, na mesma esteira, a atenção a todas as técnicas e/ou medidas de proteção da saúde laboral. Noutras palavras, se é dever patronal o de preservar o meio ambiente de trabalho e o de evitar que ele se transforme em um “covidário” particular, também é seu dever impedir situações de risco coletivo, incluindo a proibição de que trabalhadores que se recusem à vacinação compareçam e ingressem no ambiente corporativo.
Desse modo, ante a renitência do trabalhador, a possibilidade atual da sua vacinação e a obrigação patronal de proteger a saúde dos demais trabalhadores, restará ao empregador aplicar as sanções disciplinares legalmente previstas, com a progressividade necessária, até mesmo à vista do artigo 158, I e II, da CLT: a advertência, a suspensão e, no limite, a dispensa com justa causa (notadamente pela hipótese do art. 482, “h”, da CLT). Excluam-se apenas as exceções legais (que confirmam a regra), como no caso de sucedâneos adequados que previnam o risco labor-ambiental (e.g., testes negativos periódicos de sars-cov-2, às expensas do trabalhador), ou ainda no caso de risco grave e pessoal ao trabalhador (em razão de alergias, doenças autoimunes, gravidez e situações similares, aplicando-se analogicamente o art. 15 do Código Civil brasileiro).
Encerro com a advertência de Gramsci, em seus Cadernos do Cárcere (1926-1937): “A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo não pode nascer; nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece”. Agora, não será diferente. Cabe a cada cidadão reconhecer – e repudiar – o que é mórbido; e, por outro lado, identificar – e referendar – o que é justo e razoável, com a necessária moderação. Por essas veredas, e somente por elas, será possível abrir caminho para um “novo” minimamente virtuoso.
* Professor associado de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da USP