Gustavo Justino de Oliveira, professor de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da USP
Em fins de 2021, quase dois anos após a eclosão dos primeiros casos no Brasil, ainda estamos vivenciando uma das experiências mais desafiadoras e transformativas para a humanidade deste prenúncio de século 21: a pandemia da Covid-19, e todos os seus efeitos excruciantes para a saúde individual e coletiva, para a economia, para as relações sociais e para a política. Dada a sua configuração transdisciplinar, a pandemia também provoca e impõe novas formas de se criar, aplicar e refletir o Direito, em todos os seus ramos jurídicos. Sem prejuízo disso, talvez o ramo jurídico mais impactado pelo contexto referido seja o Direito Administrativo.
Um primeiro impacto a ser ressaltado no cenário aludido é que, desde a qualificação da pandemia da Covid-19 como emergência em saúde pública de importância nacional (Espin) — Portaria nº 188/GM/MS, de 3 de fevereiro de 2020 —, inaugurou-se no Brasil um Direito Administrativo emergencial, compreendido como conjunto de regras e princípios de aplicação especial, emergencial e transitória a todos os fatos, atos, contratos e relações envolvendo o público e o privado — em todas as esferas federativas — decorrentes diretamente (e por vezes indiretamente) da pandemia em si. Portanto, essa profusão legislativa e normativa especializada parece ter sido uma decorrência inexorável dos impactos indeléveis da Covid-19 nas vidas do ser humano, e o poder público foi instado a fazer frente às infinitas intempéries que esta pandemia, de forma devastadora, continua a impingir em nosso cotidiano. Esse Direito Administrativo pandêmico emergencial passou a conviver com o Direito Administrativo comum vigente, tornando muito mais laboriosa as tarefas dos agentes públicos no manejo do ordenamento jurídico administrativo como um todo.
E dessa constatação surge um segundo aspecto a ser analisado, e que diz respeito ao forte pragmatismo com que este Direito Administrativo emergencial foi construído e passou a ser aplicado. Esse caráter pragmático do Direito Administrativo emergencial afina-se em muito com sua essência e propósito, pois trata-se de um autêntico "Direito de enfrentamento", e por isso critérios e parâmetros interpretativos e de aplicação das normas devem ser (e de fato foram) homenageados, a exemplo do que vem ocorrendo com a Lei federal nº 13.979/20, considerada a Lei Geral da Pandemia, a qual acabou tendo de ser aplicada de modo concorrente — porém com certa primazia dos entes subnacionais — com as leis locais e estaduais, nos termos da construção hermenêutica jurisprudencial do STF, através do julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIns) nº 6.341 e 6.343 (também de fortíssimo teor pragmático), a partir dos conflitos interfederativos representativos de pontos de vista muitas vezes incoerentes e inconciliáveis entre União federal, estados e municípios.
Imperioso relembrar que esse momento pragmático na pandemia tornou-se mais possível pela anterior edição da Lei federal nº 13.665/18, que reformou a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb), a ela adicionando critérios pragmáticos e consequencialistas de Direito Público. Para lidar com essa multiplicidade de ações públicas esperava-se, de forma não tardia, a instalação de uma coordenação geral ou comitê de crise, instância de governança interfederativa — até aqui inclusive um traço característico do SUS — que imprimiria maior sinergia e concertação entre o ente nacional e os subnacionais.
Outro aspecto importante a evidenciar é que tradicionais instrumentos administrativos que de certo modo haviam caído em desuso, como a requisição administrativa, foram largamente empregados pelos entes federativos nos momentos mais dramáticos da pandemia e obviamente tiveram de ser repaginados ou atualizados frente ao mundo atual pelo Judiciário (por exemplo, ADIn nº 6.362-DF, no STF), permitindo-se o seu uso, mas com a contenção de abusos e/ou excessos de poder no manejo desses instrumentos, cuja natureza é fortemente interventiva da propriedade privada. Ou seja, o Direito Administrativo emergencial não somente trouxe novos instrumentos de intervenção administrativa para enfrentamento da pandemia, mas acabou por provocar uma atualização dos instrumentos administrativos já consagrados, habilitando a Administração Pública a empregá-los neste e em futuros contextos similares, mas à luz de um devido processo legal melhor definido.
Um quarto ponto a ser examinado relaciona-se com a baixa utilização no contexto pandêmico de campanhas e medidas de cunho informativo, explicativo e preventivo sobre as ações governamentais que estavam à época sendo tomadas; seus motivos, efeitos esperados. Aqui reinaram a confusão e a falta de informação sobre o que de fato deveria ser de conhecimento da população. Mais do que isso, com algumas honrosas exceções, ações fortemente interventivas na esfera dos indivíduos, restritivas de direitos inclusive — quarentenas, isolamento, toque de recolher etc. — foram muito pouco ou nada explicitadas à população, anteriormente à tomada de decisão e efetivação desses comandos. Por outro lado, no exercício desse poder de polícia pandêmico, o próprio poder público inúmeras vezes esvaziava a eficácia das medidas por ele mesmo propostas com suporte legal, como não aplicar multas àqueles que intencionalmente se recusaram a usar máscaras obrigatórias; não interditar ou realizar monitoramento de estabelecimentos privados variados os quais se negavam a seguir adequadamente normas de segurança sanitária, e abriam suas portas para eventos que promoveram aglomeração e contaminação maior da população com o Covid-19. Fato é: os reais propósitos de contenção e de enfrentamento da pandemia nem sempre ficaram claros pelos entes federativos — sobretudo por parte da União federal, mas não somente.
Finalmente, um último aspecto diretamente relacionado à inação ou omissão parcial/ total dos poderes públicos, por vezes culposas, por vezes explicitamente dolosas e intencionais: o tema da responsabilidade do Estado por danos causados à população diante da ausência ou omissão no enfrentamento da Covid-19 [1]. Apoiado nas possíveis evidências, indícios e conclusões trazidos pela CPI da Covid-19 — sem a isso se limitar —, este sem dúvida será um dos temas principais da agenda pós-Covid-19 no Brasil: pedidos indenizatórios e de reparação de danos materiais morais, individuais ou coletivos, decorrentes dessas omissões, desde que comprovado o nexo de causalidade exigido nos termos do artigo 37, §6º, da Constituição de 1988. A morte de pessoas pela administração oficial de remédios cuja eficácia no tratamento da Covid-19 era tida por duvidosa ou contraindicada; morte ou incapacitação de pessoas internadas em hospitais públicos decorrente do não suprimento de remédios que deveriam ser aplicados em processos de entubação; pessoas que foram acometidas pela doença porque não se vacinaram por falta de vacinas; vacinas com prazo de validade expirado, e assim por diante, a lista aqui é infindável. Indubitavelmente, trata-se do grande tema para o Direito Administrativo emergencial, em um contexto pós-pandêmico, como aliás já aconteceu em países como a Itália.
Certo é que ainda é cedo para medirmos os reais impactos, de forma global, da pandemia no Direito Administrativo. Sem embargo, ao menos neste momento precoce, parece evidente a influência do Direito Administrativo pandêmico emergencial no ordenamento jurídico administrativo, e talvez aqui tenhamos no Brasil um legado positivo deste capítulo doloroso da humanidade, no sentido de um aperfeiçoamento das bases normativas, principiológicas e dogmáticas do Direito Administrativo, sob a ótica de maior pragmatismo, consequencialismo e efetividade.