Propósito de reverter o embranquecimento incentivado em séculos vem sendo alcançado
Maria Paula Dallari Bucci, Professora de Direito do Estado da Faculdade de Direito da USP
Artigo escrito, originalmente, para o Jornal Folha de S.Paulo
O indeferimento do ingresso de dois estudantes no processo de seleção da USP, por não preenchimento dos critérios de cota racial, tem sido objeto de posturas pouco racionais contra o sistema.
Muito da crítica recupera antiga posição contrária às cotas, as quais incorreriam no erro de adotar um critério racial numa sociedade miscigenada como a brasileira. O mecanismo teria "racializado" o Brasil, numa cópia malfeita das ações afirmativas dos EUA. Melhor seria, na opinião dos críticos, restringir-se ao critério da escola pública, considerando a simplicidade das cotas sociais.
Mas há um equívoco nessa visão; satisfazer-se com as cotas sociais seria seguir negando a discriminação racial presente em todas as dimensões da vida brasileira. Sermos um país de pardos não faz desaparecer o preconceito de cor, evidência que só foi bloqueada porque vigorou entre nós, por décadas, o mito da democracia racial.
A Lei de Cotas não adotou o critério do genótipo. Ela nunca pretendeu eleger beneficiários com base em características genéticas que garantiriam objetivamente tratar-se de indivíduos da "raça" negra, até porque inexiste raça no sentido de subgrupo da humanidade. Seu critério é outro, é o fenótipo, isto é, o aspecto exterior, o conjunto de traços que faz com que os indivíduos sejam reconhecidos por outros como integrantes de grupos étnicos distintos.
É com base no fenótipo que se dão as lamentáveis práticas racistas em estádios de futebol. Sendo assim, a quebra da discriminação deve percorrer o mesmo caminho, também a partir do fenótipo, mas agora no sentido contrário.
Quando o Brasil adotou a Lei de Cotas e o Supremo Tribunal Federal reconheceu a sua constitucionalidade, a dificuldade de focar o benefício com precisão não era desconhecida. O principal propósito da lei era reverter o embranquecimento incentivado em séculos de políticas oficiais. Esse objetivo vem sendo alcançado. Revolver a consciência amortecida da sociedade sobre essa questão é um dos méritos e não defeito da lei.
Na USP, as comissões de heteroidentificação foram criadas em 2022, por demanda do movimento negro, para impedir que a concessão indevida de um benefício gerasse revolta nas salas de aula, conturbando o ambiente de estudo, como ocorria até então. Eventual excesso de zelo na atribuição do benefício —pouco usual em nosso país tão acostumado a favores seletivos— não é prova da "falência do tribunal racial", mas, ao contrário, de que a regra deu certo.
Segundo informam as Pró-Reitorias de Inclusão e Pertencimento e de Graduação da USP, a foto apresentada na inscrição é avaliada por duas bancas independentes e, quando necessário, realiza-se a oitiva presencial ou virtual do candidato. Dessa decisão cabe recurso a uma comissão. Só depois disso o Conselho de Inclusão e Pertencimento emite a decisão final. Caso o recurso seja indeferido, o próximo da fila, um negro, é quem terá direito à vaga. Em 2024, dos 1.606 casos analisados, 1.387 foram aprovados (86%); 187 foram considerados não aderentes à política afirmativa (12%) e 32 nem mesmo compareceram às oitivas (2%). O processo, portanto, é bastante cuidadoso e deve ser tratado com seriedade e racionalidade indispensáveis ao avanço da agenda antirracista.