Renato de Mello Jorge Silveira, Professor Titular de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP
Artigo escrito, originalmente, para a Revista Conjur
A chegada de 2022 traz uma série de reflexões, algumas de ordem penal e em perspectiva. Recorde-se, assim, que os já distantes anos 1990 conheceram, ao seu tempo, inúmeros avanços em um número bastante vasto de cenários. Em relação ao Direito Penal, seria de se ter em conta que acabou por consagrar um passo fundamental na construção do Direito Penal Econômico. Cuidou-se, então, de subscrever definitivamente a temática acessória da lavagem de dinheiro, a qual, rapidamente, ganhou ares, ainda que sob críticas, de primeira grandeza [1].
É bem verdade, e isso deve ser desde logo pontuado, que muitos autores questionam a legitimidade, ou autonomia, da rama penal econômica. Inegavelmente, no entanto, ela parece bastante presente. Metamorfoseou-se com o passar do tempo. Modificou conceitos. Ajustou pensamentos. Ampliou e consagrou, anos depois, uma faceta anticorrupcional, mudando mesmo os parâmetros do que se poderia entender por questões penais econômicas e, também, por que não?, empresariais.
Tudo muito rapidamente evoluiu. Hoje, no alvorecer de 2022, quando se comemora o aniversário de 13 anos do surgimento do fator mais revolucionário, quer em termos econômicos, tecnológicos, sociais e, proximamente, penais, da percepção penal econômica, isso vem à mente. Agora, para além das fintechs — que tanta preocupação jurídica já gerou —, tem-se, na inovação das criptomoedas, que tiveram como momento germinal, o surgimento do bitcoin, um novo marco de transmutação do sistema.
Nos momentos subsequentes ao seu lançamento pelas mãos de Satoshi Nakamoto, uma sombra de dúvida criminal já se fez presente ao bitcoin. Utilizada que foi pela rede de comércio de produtos ilegais e drogas — silkroad —, rapidamente foi ela confundida com o ilícito em si. O tempo mostrou, contudo, que essa noção era falsa. Ao que depois vieram as críticas — ainda presentes — sobre sua utilidade em termos de estelionatos piramidais [2], em reedição ao conhecido esquema Ponzi, que, no Brasil, teve casos conhecidos como "Boi Gordo" ou "Avestruz Master". Mas note-se: aqui, não raro, as criptomoedas seriam meramente o objeto de pirâmides financeiras, e não a fraude em si. Não seria, pois, qualquer situação envolvendo aplicações em criptomoedas que implicam em crime. E nem poderia ser. Além disso, diga-se, ao se observar a valorização de inúmeras moedas, algumas das promessas alegadas poderiam nem soar tão ilusórias assim [3].
De toda forma, a inovação das criptomoedas abala e possivelmente abalará ainda mais fortemente o campo penal econômico, por muitas razões. A primeira delas diz respeito ao fato de que elas acabam por atuar no que poderia se considerar por um trinômio penal econômico, visto, no Brasil, em relação aos crimes de evasão de divisas, de sonegação fiscal e de lavagem de dinheiro. As manifestações iniciais da Justiça nacional parecem indicar que sobre esse tripé é que se darão os principais questionamentos criminais em tal seara [4]. No entanto, se essa situação já se mostrava presente, possivelmente será ainda mais agudizada.
De fato, o momento presente, em que se verifica cada vez mais um aumento de importância e aceitação das criptomoedas, já faz imaginar novos questionamentos. Ainda antes da pandemia da Covid-19, isso já começava a se fazer presente. A IN 1.888, por exemplo, deu primeiras noções de pretensa regulação em relação a tantas exchanges, responsáveis pela venda a varejo em território nacional, mas isso parece ou ilusório ou de pouca efetividade. Enquanto o mundo buscava um novo normal, ainda sob as dores do vírus que paralisou o mundo, as criptomoedas sofreram transformações significativas. E, aqui, não só em ter inovações geracionais, possibilitando-se, hoje, sua utilização em contratos inteligentes ou a tokenização de tantos bens. Sua aplicação em termos de aplicação prática e negocial em muito se viu alterada. E, com isso, só se faz aumentar certa preocupação criminal. O que reservará o ano de 2022 no que diz respeito a tal realidade?
Observe-se que, em relação aos problemas que se avizinham, para além de acusações erráticas em relação à lavagem de dinheiro [5], são de se ver diversos pontos de dúvida. Entre eles poderiam se mencionar, por exemplo, o questionamento da prática de mineração, que tanto facilitaria a lavagem de ativos por parte de organizações criminosas, principalmente no exterior; de trocas e escambos de hard wallets como se fossem moedas em si mesmas; ou ainda de negócios em OTC, contornando-se, simplesmente, regulações apriorísticas.
Outro ponto fundamental, e esse tem relação com a proliferação de fundos e empréstimos de criptos, bem como sua real utilização com meios de pagamento, diz respeito ao uso de programas como lightning network, em que a tecnologia permite que diversos pagamentos acabem por se dar antes mesmo de um registro no livro aberto da moeda. A capacidade sem fim de possibilidades de uso P2P, sem maiores registros, já causa preocupação penal. Isso para não se falar em termos de arbitragem de moedas, algo tão conhecido e referendado como uma prática tradicional de lavagem de dinheiro, mas tão corriqueira e comum no mundo digital.
Como, contudo, coincidir a evolução com o controle do ilícito? Já se disse que as criptomoedas representam o grande passo de transformação de um mundo, com inúmeras e de correntes implicações penais. Por certo isso explica o fato de tantos economistas e especialistas na regulação do mercado financeiro estarem a se debruçar sobre as mesmas. Parafraseando um dos maiores conhecedores da matéria, e doutor em Direito pela Universidade de São Paulo, Jairo Saddi, é, de fato, nesse mundo virtual que se estará por navegar em mares revoltos [6]. Fundamental, portanto, ao menos em negócios desse jaez, um acompanhamento detido de profissionais experientes e de confiança;
De todo modo, e por qualquer ângulo que se procure visualizar, um dilema estará sempre presente, e um dilema visto desde o escrito fundamental de Nakamoto. Caso se pretenda uma fuga do sistema, por certo se cairá em uma armadilha criminal do mesmo. Caso se procure utilizar o mundo cripto em sede especulativa, muito maiores cuidados serão necessários, sob pena de, uma vez mais, incorrer-se em areia movediça criminal. Como já sustentou Jahn, o advogado coorporativo pode bem se mostrar como um novo advogado de defesa. Nesse sentido, talvez o passo necessário para a prevenção de potenciais problemas penais econômicos em sede virtual seja o de uma necessária educação e participação e acompanhamento de profissional do Direito do que qualquer outra coisa. Enfim, de se buscar, antes de mais nada, uma regulação indireta e que seja a mesma também responsável, pois regular um mercado que nasceu para não ser regulado pode ser, sim, uma contradição em termos.
[1] Cf; BALANCO CORDERO, Isidoro. El delito de blaqueo de capitales. Granada: Aranzadi, 2012, p. 53 e ss. BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro. São Paulo: Revista dos tribunais, 2016, p. 29 e ss.
[2] Cf. SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Bitcoin e suas fronteiras penais. Em busca do marco legal as criptomoedas. Belo Horizonte: D’Plácido, 2018, p. 98 e ss.
[3] SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Bitcoin...Op. cit., p. 49 e ss.
[4] Cf. SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Criptocrime: considerações penais sobre criptomoedas e criptoativos. Revista de Direito Penal Econômico e Compliance, v. 1, p. 1, 2020, passim.
[5] Cf. SILVEIRA, Renato de Mello Jorge; CAMARGO, Beatriz Correa. Ocultar o oculto: apontamentos sobre a lavagem de dinheiro em tempos de criptomoedas. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 174, p. 145 e ss, 2021.
[6] SADDI, Jairo. Crise e regulação bancária. Navegando mares revoltosos. São Paulo: Textonovo, 2001, p. 173 e ss.