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Precisamos de um VAR para as cotas raciais?

Maria Paula Dallari Bucci, professora de Direito do Estado da Faculdade de Direito da USP

 

Fernando Reinach escreveu o artigo “As cotas raciais e a regra de impedimento no futebol”, no Estadão de 26/11/2022, para criticar a política de cotas. Segundo ele, a regra de definição de raça, que indica os seus beneficiários, não pode ser respaldada em critérios científicos, pois não há diferença genética significante entre uma pessoa branca e outra negra. O articulista apela à analogia, comparando essa dificuldade à operação do VAR (Video Assistant Referees), instrumento de apoio à arbitragem no futebol cuja contribuição ainda é discutível. Ou seja, nem mesmo com um VAR das cotas, de acordo com o articulista, teríamos um critério irrefutável baseado na ciência para a aplicação dos programas de ação afirmativa.

 

Ironias à parte, a objeção, a rigor, não é nova; já constava do discurso que dizia que as cotas iriam “racializar” a sociedade. A réplica era que a sociedade brasileira nunca deixou de ser racializada; a “democracia racial” é um mito e o preconceito sempre discriminou os negros. Mas é oportuno esclarecer o mecanismo de seleção dos cotistas. Sua evolução ao longo do tempo, com a introdução da heteroidentificação, era esperada, dada a profundidade da mudança cultural em andamento, além de estar prevista nas normas sobre o acompanhamento do programa.

 

No plano macroinstitucional, as ações afirmativas não foram instituídas, como alguns pensam, para compensar a injustiça contra os negros. A “obra da escravidão” é de tal magnitude que nenhuma compensação seria suficiente para repará-la. A política de cotas é destinada à sociedade, no seu conjunto. Seu objetivo é diminuir o viés pró-branco que instituições como a universidade cristalizaram no seu interior. Uma universidade que espelhe a sociedade brasileira, capaz de pensar sobre os seus problemas, a partir da visão e experiência dos vários grupos que a compõem, deve necessariamente ser integrada por esses segmentos. A superação do racismo implica a reeducação coletiva da sociedade, com a revisão de condutas e formas de pensamento. A ciência que se pretende socialmente relevante não tem como escapar dessa agenda.

 

No plano meso-institucional, o arranjo jurídico que organiza essa política, a Lei de Cotas, Lei 12.711/2012, no âmbito federal (ou disposições similares adotadas pelas instituições no exercício de sua autonomia), define a autodeclaração como requisito de qualificação para as cotas. O fato de haver uma margem de apreciação sobre o critério não é um problema específico desta lei. O direito, que não é uma ciência exata, opera com os chamados conceitos jurídicos indeterminados, como é o caso da boa-fé, por exemplo. A dificuldade em definir boa-fé não torna o conceito imprestável nem descarta esse valor das relações sociais. No caso das ações afirmativas, a autodeclaração foi o critério menos arbitrário encontrado. Adicionalmente, ele tem um sentido político, ao induzir a consciência dos negros sobre as oportunidades representadas por esses programas.

 

Resta o problema das fraudes. Essa questão é tratada no plano micro institucional, isto é, nos procedimentos que disciplinam o acesso ao benefício ou a sua exclusão. Vale lembrar que a prática de atos ilegais não se limita aos falsos-negros cotistas; há fraudadores de todo gênero. Neste caso, a legislação não é especialmente falha e o seu aprimoramento, como dito, estava previsto nas regras.

 

A heteroidentificação, que passou a ser adotada pela USP (Resolução 8.287/2022), seguindo tendência de programas congêneres, consiste numa etapa de confirmação da autodeclaração por banca integrada por professores, técnicos e estudantes, eleitos pela comunidade, que avalia elementos fenotípicos do candidato. Esse critério, vale lembrar, é parecido com o utilizado sem nenhuma base científica pelo segurança de loja que segue um freguês de pele escura quando esse entra no estabelecimento. Se serve para discriminar negativamente, porque não serviria quando se trata de discriminação positiva?

 

O artigo de Reinach, talvez inadvertidamente, pode confundir o leitor, ao afirmar que a ciência não consegue resolver esse problema em razão da falta de base científica para a diferenciação racial. Mas se ele mesmo reconhece que a “discriminação de fato existe como um fenômeno social e cultural e, portanto, precisa ser combatida”, faria mais sentido usar a inventividade científica para entender como superá-la. Isso, aliás, parece estar acontecendo com o VAR, que tem ajudado a arbitragem na Copa.

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