Ronaldo Porto Macedo Junior, Professor Titular de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP
Artigo escrito, originalmente, para o Jornal “O Globo”
Algumas peças publicitárias comuns na televisão brasileira despertam um misto de irritação e até graça. Uma das que me despertaram este tipo de sentimento ambíguo trata do comércio de produtos capazes de resolver problemas sexuais em geral, que vão da disfunção erétil, ejaculação precoce à falta de apetite sexual. O mais curioso é que o produto é recomendado para homens e mulheres! A publicidade parece uma verdadeira gozação... Afinal, é bizarro que alguém se convença a comprar esta panaceia da vida erótica dos casais. Contudo, ela também irrita visto que, se é publicidade paga, é muito provável que consiga atingir e lesar alguns consumidores desavisados, bem como enriquecer fornecedores descomprometidos com a verdade. As peças publicitárias suscitam também um importante tema relativo aos limites da liberdade de expressão no campo do discurso comercial.
À primeira vista, a abusividade e enganosidade da informação publicitária referida é tão manifesta, que não seria difícil encontrar um bom fundamento jurídico para a sua proibição. O Código de Defesa do Consumidor é o principal fundamento. Em seu artigo 37 está disposto de maneira muito clara que “É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva”. Não é difícil entender o motivo pelo qual a mencionada peça publicitária seria enganosa. A lei dá uma clara definição deste conceito: “É enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços.”(§1°, art.37). A informação sobre as propriedades medicinais de tão largo espectro é claramente falsa e capaz de induzir o consumidor a erro. O CDC também tratou de indicar que “o ônus da prova da veracidade e correção da informação ou comunicação publicitária cabe a quem as patrocina” (artigo 38), razão pela qual não se haveria que falar que o consumidor é quem deveria provar que o produto não possui as propriedades milagrosas anunciadas. É útil lembrar que uma mera requisição de informação da parte do Ministério Público, do Judiciário ou mesmo de autoridade administrativa, como o Procon ou a Polícia, poderia determinar a entrega das informações técnicas e científicas que supostamente embasariam a mensagem comercial. Também o Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) poderia requerer informações. Isto porque “o fornecedor, na publicidade de seus produtos ou serviços, manterá, em seu poder, para informação dos legítimos interessados, os dados fáticos, técnicos e científicos que dão sustentação à mensagem” (art.36 § único). Diante da inexistência de informações verídicas conforme a mensagem publicitária, estariam justificadas medidas de controle, proibição, criminalização e mesmo indenizatórias.
Contudo, um advogado das empresas responsáveis pelas publicidades mencionadas poderia argumentar que este tipo de restrição violaria a sua liberdade de expressão, direito fundamental protegido constitucionalmente. Faria sentido tal alegação? Entendo que não. Vejamos os motivos. O primeiro fato a considerar é que existe um equívoco importante na forma ordinária pela qual o direito à liberdade de expressão é tratado no Brasil. O discurso comercial não merece a mesma proteção que outras formas de discurso. O direito e a doutrina sobre o assunto, inclusive nos Estados Unidos, sempre lembrado por possuir o mais radical modelo de proteção da liberdade de expressão, distinguem o discurso público (não-comercial) do discurso comercial. Este último não recebe o mesmo tratamento reservado ao primeiro, visto que é considerado um discurso orientado por motivações meramente econômicas, normalmente desvinculadas da intenção expressiva de apresentar uma visão de mundo, uma crítica ou ideia sobre o mundo. Nesse sentido, ele seria um discurso de “menor valor” se comparado com os discursos políticos, ideológicos, artísticos, etc.
A afirmação de que o discurso comercial “possui menor valor” precisa, porém, ser justificada, e não pode ser meramente postulada. A sua justificação está relacionada aos principais fundamentos usualmente invocados para a proteção da liberdade de expressão em geral. Aqueles que são usualmente mais invocados são os seguintes: 1) a proteção da autonomia individual, autoexpressão e auto realização; 2) a garantia democrática; e 3) a contribuição para a produção da verdade no “mercado de ideias”. Para compreender a questão da autonomia individual, é fundamental entender que a liberdade de expressão se coloca de forma diversa quando vista da perspectiva do anunciante ou do consumidor.
Por um lado, não é nada evidente que a autoexpressividade do empresário anunciante para veicular mensagem orientada ao seu lucro fique comprometida quando existem limites relacionados à veracidade da informação veiculada. Por outro lado, é mais fácil compreender as razões pelas quais eventuais informações úteis para o consumidor devem lhe ser garantidas e franqueadas.
Por motivos semelhantes, a liberdade dentro do discurso comercial está usualmente limitada pelo compromisso da veiculação da informação verdadeira, e não abrange o direito de dizer mentiras ou falsidades. Esta limitação também está relacionada ao reconhecimento atual de que nem sempre um mercado de ideias completamente livre contribui para a produção da verdade. A possibilidade de circulação de ideias falsas (especialmente fake news) não gera nenhuma contribuição efetiva para a produção da verdade. Por essa mesma razão, permitir que trabalhos não científicos sejam apresentados em eventos científicos não contribuem para a busca da verdade cientifica.
Por fim, é certo que inexiste uma relação direta entre a proteção da vontade democrática e o discurso comercial. Tal vínculo é manifesto no caso da expressão política e ideológica, mas é bastante tênue no caso do discurso comercial orientado para a obtenção do lucro econômico.
Entretanto, afirmar que o discurso comercial não tem o mesmo valor de outros discursos não implica em dizer que não tenha valor nenhum, ou que esteja completamente à margem da proteção pela liberdade de expressão. A doutrina americana hoje oferece a mais ampla e robusta proteção do discurso comercial com base na liberdade de expressão e foi alterada significativamente nas últimas décadas ao lidar com esta questão. Desde o início do século passado até a década de 1940, vigorou um regime de grande desconfiança com relação a extensão da liberdade de expressão ao discurso comercial, usualmente considerado de “menor valor”, “não essencial para o autogoverno” e marcado por inúmeros precedentes de exageros e falsidades em prejuízo ao consumidor.
Contudo, é somente com a decisão no caso Valentine v. Chrestensen, 316 U.S. 52 (1942) que a Suprema Corte Americana veio a declarar, em decisão unânime, que a Constituição Americana não protegia “a publicidade puramente comercial”. O julgamento entendeu prevalecer a lei municipal que proibiu, por razões sanitárias, a distribuição de flyer publicitário de exposição um submarino da Primeira Guerra Mundial de propriedade do Sr. Chrestensen. Esta decisão fixou um precedente que foi seguido rigorosamente por 33 anos, que veio a ser reformado apenas em meados dos anos 1970 por meio de duas decisões importantes.
A primeira delas ocorreu no caso Bigelow v. Commonwealth of Virginia, 421 U.S. 809 (1975), quando a Suprema Corte estendeu a proteção da Primeira Emenda (sobre liberdade de expressão) para a publicidade comercial de serviço de referência sobre aborto. A segunda foi dada no caso Virginia State Pharmacy Board v. Virginia Citizens Consumer Council, 425 U.S. 748 (1976), quando o tribunal entendeu que a constituição protegia a publicidade de preços de remédios.
Os precedentes marcaram uma importante reorientação da jurisprudência americana que passava a reconhecer algum tipo de proteção ao discurso publicitário comercial verdadeiro de produtos e serviços com base na liberdade de expressão, reformando a doutrina Chrestensen. Estas mudanças se consolidaram com o anúncio do caso Central Hudson Gas & Electric Corp. v. Public Service Commission, 447 U.S. 557 (1980) que ficou as bases de um teste, com pequenas alterações, se tornou o padrão usado até hoje. Nele fica especificado que: 1) a mensagem comercial precisa ser verídica e relativa a um produto ou serviço licito; 2) o interesse do governo a regulação da mensagem deveria ser substantivo; 3) a regulação especifica envolvida precisa ser promover diretamente o legítimo interesse do governo; e 4) precisa existir uma “ajuste razoável” (reasonable fit) entre os objetivos do governo e os meios para atingi-los.
É certo que tanto a doutrina como a jurisprudência americana não se aplicam diretamente ao caso brasileiro. Contudo, os precedentes e a experiência jurídica americana sobre liberdade de expressão, inclusive por ser o exemplo mais extremo de aplicação da liberdade de expressão ao discurso publicitário e comercial, serve de parâmetro para a avaliação das decisões brasileiras. O que vemos ao analisa-las é que nem mesmo nos EUA haveria justificação para a admissão da veiculação de publicidade tão grosseiramente enganosa e comprometedora da capacidade de decisão racional do consumidor. Daí a razão pela qual o CDC se aplica com plena vigência. Se os abusos continuam a ser cometidos, não será, portanto, por uma limitação constitucional que refreia a aplicação da legislação consumerista, mas talvez pela falta da merecida atenção por parte de nossas autoridades competentes. Sempre há tempo para corrigir este problema e interromper os abusos publicitários.