Os direitos das mulheres grávidas em situação de rua, que muitas vezes perdem o direito de conviver com seus filhos, que lhes são retirados sob alegação de ser melhor forma de primar pelo bem-estar estar dessas crianças norteou estudo da Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama da Faculdade de Direito da USP, coordenada pelos professores Calixto Salomão Filho (DCO-FDUSP) e Guilherme de Almeida (DFD-FDUSP).
Relatos de profissionais que trabalham com a população de rua demonstram que a retirada dos filhos tem como entendimento de que suas mães não têm condição de criá-los nesse contexto.
Além de ter mapeado o fluxo de atendimento a essas mães e bebês para compreender quais os direitos e as violações sofridas por essa população, o levantamento observou a falta de políticas públicas existentes nesse cenário.
A partir do relatório “Primeira Infância e Maternidade nas Ruas”, realizado por entidade que atuam com a população de rua, a Clínica desenvolveu o projeto “Oficinas Primeira infância e maternidade nas ruas de São Paulo”, que venceu a primeira edição do Prêmio Prioridade Absoluta do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), na categoria Poder Público, Eixo Protetivo. Doutoranda pela FDUSP, Janaína Gomes, responsável pelo projeto, assinala que oficinas têm se mostrado efetivas para mostrar caminhos melhores para os profissionais. “Pela pesquisa, descobrimos que as mães não eram as únicas afetadas, mas também os profissionais envolvidos, especialmente as mulheres, que demonstraram angústia frente à falta de políticas de encaminhamento em relação a essas pessoas e aos atravessamentos judiciais”, disse para reportagem da Agência de Notícias do CNJ.
A pesquisadora defende que a maternidade é possível mesmo em situação de rua, desde que haja o desejo da mulher em assumir essa filiação e o apoio para esse exercício por meio de políticas públicas de moradia, geração de renda, educação, saúde, entre outras.
Janaína Gomes, que também foi a coordenadora pedagógica da Clínica entre 2014 e 2021, explica que muitas mulheres não procuram ajuda nos serviços assistenciais por medo de perder a criança, como pode já ter acontecido outras vezes; ou por dificuldades do sistema: muitas vezes, não faz o pré-natal, por exemplo. Isso porque não tem como comprovar o endereço de residência e várias outras situações que impedem que a mulher seja cuidada.
Mesmo que ela faça tudo certo, no entanto, não há garantias de que não vai perder seu bebê na maternidade, porque a intervenção, mesmo à revelia, se tornou uma prática: se é uma mulher em situação de rua, é feita a notificação para a Vara de Infância e Juventude, que vai determinar o acolhimento do recém-nascido.
Conforme relatam os pesquisadores da FDUSP, as políticas de cuidado da família são muito precárias. “Não há política de moradia, de transferência de renda, de vagas em creches, questões de saúde. Dessa forma, percebe-se que a questão não é a mulher, já que ela tem condições de criar a criança, mas uma falha nas políticas públicas que não dão conta do conjunto de vulnerabilidades a que essas mulheres estão expostas.”
Fazer valer os direitos
O objetivo nas oficinas é usar os conhecimentos técnicos para fazer valer os direitos, mesmo quando a autoridade judiciária ou médica fala o contrário. “Como se organizar para garantir essa permanência? Nenhum profissional é obrigado a notificar a Vara da Infância quando não há, de fato, um motivo”, conta Janaína.
A Nota Técnica n? 001/2016 do Ministério da Saúde e do Desenvolvimento Social trata como deve ser a atenção para a mulher e defende um encaminhamento do cuidado e não de separação. Janaína lembrou que, em alguns estados, há relatos de juízes e juízas que determinaram a notificação da Justiça sempre que a mulher fosse usuária ou tivesse histórico de uso de drogas, para que, assim que o bebê nascesse fosse feita a destituição familiar. “Mas, nesse caso, a mulher tem de ser tratada e não punida com a separação.”
Para despertar a empatia, o projeto também criou um jogo, chamado “História de Lurdes”, no qual participantes vão caminhando com a personagem e tomando as decisões que ela deveria tomar. O jogo se inicia com a leitura da carta, na qual o público conhece a trajetória comum de uma mulher em situação de rua e, a partir da carta seguinte, a carta “contexto”, a pessoa participante se implica com as decisões inerentes a uma gravidez não planejada, sem acesso a centros de acolhida, garantia dos direitos à saúde e alimentação. Com isso, elas passam a debater as formas com que Lurdes deveria agir diante das situações.
Mobilização
Além de realizar as oficinas, a Clínica também oferece acompanhamento aos órgãos e entidades para ajudar a construir soluções diferentes para cada caso. Houve situações em que, após a participação nas oficinas, profissionais de um CAPS, ao perceberem que uma gestante não estava comparecendo ao atendimento, começaram a fazer busca ativa nos hospitais para verificar se o bebê tinha nascido e informar que ela contava com o apoio para permanecer com sua criança; em outro local, as maternidades da cidade se mobilizaram e criaram um serviço para mudar rotinas de trabalho e criar uma Casa da Gestante para receber mulheres em situação de rua.